quinta-feira, 10 de junho de 2021

Festival Internacional da Canção: Internacionalização e Música Popular Brasileira

 



Música Popular Brasileira e internacionalização.


No período colonial, a confluência das culturas ameríndia, africana e europeia, resultou no surgimento de uma musicalidade própria, com raízes na então colônia portuguesa da América, mas que, devido ao pacto colonial que também incidia sobre a cultura, seguiu para a metrópole e, de lá, para outros países europeus e outros domínios portugueses no ultramar.  Vieram para o Brasil as modas, as cantigas, as coplas portuguesas e os batuques dos africanos que se fundiram com a musicalidade ameríndia já aqui existente. Destas interações surgiu, por exemplo, a modinha brasileira (fusão entre a moda portuguesa e o lundu dos negros) que chegou em Portugal e foi aceita pela nobreza e sociedade portuguesa setecentista, além de assimilar a ópera italiana. Para o famoso Jornal de Modinhas, editado em Portugal no século XVIII, contribuíram músicos italianos, ingleses e franceses. Há diversos registros de viajantes (ingleses, alemães, russo, entre outros) que incluem a modinha em seus escritos e também foram encontradas partituras de modinhas na até mesmo na Biblioteca Nacional de Paris. Há referências ainda de que a modinha teria influenciado na formação da música de Cabo Verde, à exemplo da morna. E o lundu teria seguido o mesmo caminho, surgido entre os negros escravos no Brasil, mas depois indo para Portugal onde, devidamente adaptado, foi praticado e apreciado pela corte portuguesa

No final do século XIX o Brasil seria um grande receptor de músicas estrangeiras. Chegaram neste período a polca, a schottisch, a quadrilha, a mazurca, a habanera, o tango espanhol, entre outros. Logo, entretanto, devido aos usos e abusos dos músicos e improvisadores brasileiros, originariam-se gêneros e ritmos autenticamemte brasileiros como o choro, o tango brasileiro e o maxixe. O tango brasileiro, evidentemente, iria aos poucos desaparecendo em virtude de sua pouca prática e do maior desenvolvimento de seu vizinho mais famoso, o tango argentino. No caso do choro, de vida mais longa, se tornou referência da música brasileira e consagrou inúmeras canções mundo a fora. O maxixe, por sua vez, surge na Pequena África, no bairro da Cidade Nova, no Rio de Janeiro, mas depois de ter sua dança estilizada por Antônio Lopes de Amorim Diniz, o Duque, “triunfou em Paris”, passando a ser interpretado em muitos outros lugares e até para grandes autoridades. Os dançarinos Fred Astaire e Ginger Rogers interpretaram o ritmo brasileiro no filme Voando para o Rio [Flying Down to Rio], de 1933, e neste contexto, podemos ainda destacar Apanhei-te Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, que foi interpretada pela organista Ethel Smith em uma animação de Walt Disney, A Culpa é do Samba [Blame it on the Samba], de 1948

A partir do maxixe se desenvolveu o samba que é inaugurado com Pelo Telefone, de Donga, gravada por Bahiano em 1917. Mas, se inicialmente possuia uma forma amaxixada, aos poucos vai ganhando forma própria e muito ao gosto do povo que a produziu, tornando-se sinônimo de ‘brasilidade’, reconhecido hoje em todo o mundo como expoente da identidade musical e cultural brasileira, difusão esta que também se deve a figura de Carmem Miranda que, mesmo sendo de origem portuguesa, representou, com seu Bando da Lua, a imagem do Brasil no exterior, se consagrando como uma estrela hollywoodiana. Aos poucos o samba-enredo e o carnaval também começam a ganhar terreno no plano internacional, caracterizar a imagem do brasileiro e do samba e atrair cada vez mais visitantes para o Brasil para conhecer o que frequentemente se referencia como “o maior espetáculo da terra”. 

Da fusão entre o samba e o jazz temos a criação da bossa nova, sem dúvidas um outro grande expoente da internacionalização da Música Popular Brasileira. A tríade Vinícius de Moraes, Antônio Carlos Jobim e João Gilberto, foi responsável pela composição de obras conhecidas e reconhecidas em todas as partes do mundo. Garota de Ipanema, de Vinícius e Tom, tornou-se a segunda canção mais executada de todos os tempos, perdendo apenas para Yesterday, dos Beatles. Outras como Felicidade, Chega de Saudade, Desafinado e Eu Sei que Vou te Amar, também são facilmente identificadas mundo a fora. Contribuiu bastante para o princípio da  internacionacionalização da bossa nova, a apresentação de artistas brasileiros no Carnegie Hall, em Nova York, em 1962, facilitando a troca de informações com artistas estrangeiros  e a mimese por parte destes. Vale destacar que a internacionalização da bossa nova gerou uma contra-ofensiva dos militantes da chamada canção de protesto, percebidas em canções como Marcha da Quarta-Feira de Cinzas e Influência do Jazz, ambas de Carlos Lyra, dissidente da bossa nova.

Em meio a estes embates emerge uma musicalidade nova, que procurava maior aproximação com a tradição popular brasileira, sem deixar de ser moderna, uma canção ao mesmo tempo erudita e popular, crítica e comercial, que se caracterizou como uma música autenticamente nacional, mas que rapidamente se internacionalizou, encontrando nos festivais da canção seu lugar comum e uma plataforma de lançamento para essa internacionalização.

 


Festivais da Canção e internacionalização.


Desde o início da chamada “Era dos Festivais” já havia a pretensão de se levar a música brasileira para além das fronteiras nacionais, como revela o jornal Folha de São Paulo ao noticiar o I Festival Nacional de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, realizado em 1965, na qual se lê: “Pela primeira vez firmas comerciais resolveram inverter parte de suas verbas de propaganda numa promoção que premia o esforço de compositores populares, e até, se bem encaminhada, projetará o Brasil no exterior.” (Folha de São Paulo [Acervo Online], 08 abr. 1965). 

No ano seguinte, empataram na finalíssima do II Festival da Música Popular da TV Record, de 1966, as canções A Banda, de Chico Buarque, e Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros. A Banda conheceu uma rápida propagação internacional, o que, deve se salientar, não ocorreu por meio do Festival da Record, o qual venceu, e sim em decorrência do Festival Internacional da Canção (FIC), promovido primeiro pela TV Rio e depois pela TV Globo e que era dividido em duas fases, uma nacional e outra internacional. Mais especificamente, foi em virtude da fase internacional do FIC, em que concorriam artistas de diversos países, para os quais A Banda foi reprisada em uma apresentação de Chico Buarque, então presidente do júri internacional, que ocorreu essa difusão. 

Em uma matéria, sugestivamente intitulada O Mundo verá A Banda passar, publicada no jornal Correio da Manhã, se afirmava que poucos eram os artistas estrangeiros, concorrentes da fase internacional do FIC, que não estavam “com A Banda em suas malas” e que, pelo visto, a canção de Chico iria “rodar o mundo” (Correio da Manhã, 30 out 1966). “O que realmente ocorreu, sendo A Banda regravada em diversos países como Argentina, Estados Unidos, França, Portugal e até na Escandinávia.” (MONTEIRO, 2014, p. 07). “Era o início de uma expansão internacional da “Moderna Música Popular Brasileira”, depois reconhecida e conhecida, inclusive mercadologicamente, como MPB.” (MONTEIRO, 2020, p. 51). 

A pesquisadora francesa Anaïs Fléchet destaca que os festivais contribuiram com o alcance global da música brasileira, por “abrigarem fases internacionais nos certames [...] e por repercutirem e terem sido transmitidos para diversos países, via televisão, imprensa escrita, etc.” (FLÉCHET, 2011, p. 161). Fléchet ainda afirma que “os festivais tiveram um papel de destaque no processo de globalização, favoreceram as transferências culturais entre diversas áreas culturais e definiram um lugar para a formação de uma cultura jovem, em ruptura com a ordem estabelecida” (FLÉCHET, 2011, p. 161). E o próprio FIC também ambicionava atingir proporções globais. O idealizador e organizador Augusto Marzagão, chegou a declarar que tinha como “sonho e lema”, conseguir uma canção que fosse cantada “da Patagônia aos Urais” (MARZAGÃO apud Veja, 08 out. 1969, p. 76).

Dentre os primeiros estrangeiros, que chegavam ao Rio de Janeiro para participar no FIC, era unânime a ideia de que a bossa nova e o samba se caracterizavam como a mais autêntica representação da música brasileira. Alguns, até um pouco saudosos, lamentavam que o Brasil não produzisse mais João Gilberto’s (Correio da Manhã, 26 out. 1966, p. 09). Aos poucos, entretanto, percebe-se uma alteração nos discursos dos visitantes que, cada vez mais anseavam por conhecer os artistas que surgiam e representavam uma nova música popular brasileira, muito mais moderna que o samba e muito mais enraizada na tradição popular que a bossa nova. Os estrangeiros chegavam atempadamente para acompanhar a fase nacional do FIC e auscultar o que se estava produzindo de mais recente na música brasileira. Em linhas gerais, o FIC terminava “trazendo ao Rio uma quantidade de nomes”, que seguramente promoveriam “a música popular brasileira no exterior.” (Veja, 16 out. 1968, p. 60). 

A partir daí, na verdade, tornaram-se comuns as regravações das músicas dos festivais por artistas estrangeiros e os convites para apresentações de brasileiros em outros países. Para além de A Banda ter sido uma das canções mais gravadas no mundo naquele tempo, Maysa, Gutemberg Guarabyra, Milton Nascimento e Geraldo Vandré, são alguns dentre os muitos dos que tiveram suas canções concorrentes nos festivais regravadas em outros países ou receberam convites para apresentações e gravações no estrangeiro, propagandeando ainda mais a música e os músicos brasileiros. Edu Lobo, Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti, contribuíram com o jazz internacional. Elis Regina, Jorge Ben, Os Mutantes, entre outros, receberam convites de forma crescente para se apresentar no MIDEM (maior encontro empresarial de música do mundo) e foram muitos os que excursionaram pela América e Europa, por vezes incluindo África e Ásia. Tudo isso, portanto, confirma os festivais da canção, e mais especificamente a fase internacional do FIC, como um centro difusor da música popular brasileira para o exterior. Mais diretamente, se pretendeu evidenciar que os festivais catapultaram a “moderna música popular brasileira”, depois conhecida como MPB, caracterizando uma nova fase de internacionalização da música brasileira.




Referências

ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundu no século XVIII: Uma pesquisa histórica e bibliográfica. São Paulo: Ricordi, 1963.

“‘Arrastão’ venceu facil festival, mas outra musica de Vinicius não convenceu. Folha de São Paulo [Acervo Online], 08 abr. 1965. Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrada_08abr1965.htm Acesso em: 20 maio de 2015.

“Com Eles é Briga na Certa”. Veja, nº 06, 16 out. 1968, pp. 58-60.

“Dori não esperava vencer, mas agora vai comprar casa”. Correio da Manhã, 26 out. 1966, 1º Caderno, p. 09.

EFEGÊ, Jota. Maxixe: A dança excomungada. Rio de Janeiro: Funarte, 2009.

FLÉCHET, Anaïs. Por uma história transnacional dos festivais de música popular: Música, contracultura e transferências culturais nas décadas de 1960 e 1970. Patrimônio e Memória, UNESP-FCLAs-CEDAP, vol. 7, nº 1, junho de 2011.

GALVÃO, Walnice Nogueira. Ao Som do Samba: Uma Leitura do Carnaval Carioca. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.

MELLO, José Eduardo (Zuza) Homem de. A Era dos Festivais: Uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.

MONTEIRO, José Fernando S.. História Global e Festivais da Canção: Brasil e Portugal. In: anais [eletrônico] do 28º Simpósio Nacional de História – ANPUH-SC. Florianópolis: ANPUH, 2014. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/site/anaiscomplementares Acesso em: 20 nov. 2015.

MONTEIRO, José Fernando S.. A Modinha Brasileira: Trajetória e Veleidades (sécs. XVIIIXX). Curitiba: Editora Appris, 2019.

MONTEIRO, José Fernando S.. Festivais RTP e Festivais da MPB: Entre a tradição e a modernidade (1964-1975). 2020. 467 p. Tese (Doutorado em História - Programa de Pós-Graduação em História (PPHR), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Seropédica, RJ, 2020. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/12320/1/PercepcaoAmbientalMuseus_Costa_2014.pdf. Acesso em: 29 março 2021.

“O Mundo verá A Banda passar”. Correio da Manhã, 30 out 1966, Feminino, p. 01.

“Os Sons de Sempre”. Veja, nº 57, 08 out. 1969.

“Quero ver isso de Maxixe! Das origens na Cidade Nova à internacionalização do maxixe”. por José Fernando Monteiro. Musica Brasilis [portal], s/d. Disponível em:  http://musicabrasilis.org.br/temas/quero-verisso-de-maxixe-das-origens-na-cidade-nova-internacionalizacao-do-maxixe Acesso em: 06 mai. 2018.

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001.

VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. 6ª edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Editora UFRJ, 2007.



Resumo expandido apresentado no 1º Ciclo de Debates do IMAM, 27-28 de maio de 2021. Disponível em:  https://www.even3.com.br/1cicloimamufrj/