domingo, 20 de novembro de 2016

Lundu: Origem da Música Popular Brasileira.

O lundu tem uma proveniência adversa. Sabe-se que deriva da musicalidade dos negros de Angola e do Congo, que levaram para o Brasil a sua tradicional dança da umbigada (semba, em quimbundo[1]). No século XIX, o português Alfredo de Morais Sarmento descreveu uma dança “essencialmente lasciva”, capaz de reproduzir os “instinctos brutaes” dos povos africanos. Segundo o viajante: “Em Loanda [...], o batuque consiste tambem n’um circulo formado pelos dançadores, indo para o meio um preto ou preta que depois de executar vários passos, vai dar uma embigada, a que chamam semba, na pessoa que escolhe, a qual vai para o meio do circulo, substituil-o”. (SARMENTO, 1880, p. 127). É certo que essa dança a qual Sarmento se refere, de nome “batuque”, foi a mesma que chegou ao Brasil com os negros escravizados. No Brasil, aliás, “batuque” se tornou um termo genérico para denominar todas as manifestações dos negros e com toda a certeza é dessa manifestação que se originaram muitas outras práticas dos negros, inclusive o que depois foi chamado de “lundu”. Mas, o poeta Tomás Antônio Gonzaga, que viveu não somente em Minas Gerais, mas também na Bahia, durante sua juventude, chega a mencionar tanto o batuque quanto o lundu no mesmo poema, dando à ideia de formas diferenciadas:
 “Aqui lascivo amante sem rebuço
À torpe concubina oferta o braço:
Ali mancebo ousado assiste e faia
À simples filha, que seus pais recatam.
A ligeira mulata, em trajes de homens,
Dança o quente lundu e o vil batuque;” (GONZAGA, 2013, p. 500).
A umbigada se encontra presente em praticamente todas as danças de origem africana existentes no Brasil, incluindo o lundu. Segundo Carlos Sandroni:
“No lundu todos os participantes, inclusive os músicos, formam uma roda e acompanham ativamente, com palmas e cantos, a dança propriamente dita, que é feita por um par de cada vez. [e completa] [...] A ‘umbigada’ é o gesto coreográfico que consiste no choque dos ventres, ou umbigos [...]. Em traços gerais, elas consistiam no seguinte: todos os participantes formam uma roda. Um deles se destaca e vai para o centro, onde dança individualmente até escolher um participante do sexo oposto para substituí-lo (os dois podem executar uma coreografia – de par separado – antes que o primeiro se reintegre ao círculo). (SANDRONI, 2001, pp. 64-84).

Até mesmo por tribos indígenas a umbigada foi incorporada e, devido a sua lascividade, José Ramos Tinhorão (1972) chegou a dizer que a umbigada é uma “representação dramática de um jogo amoroso capaz de conduzir ao clímax sexual”. Também por isso, por ser considerada lasciva e chula, a dança dos negros chegou a ser proibida no Brasil, mas foi justamente sua languidez que despertou enorme apreço em muitos colonos, a ponto de começarem a praticar o lundu em seus festejos. Desta forma, aos poucos o lundu se tornou a primeira manifestação originada entre os negros a ser aceita pela sociedade branca da colônia.

A dança do lundu, de Moritz Rugendas, 1835. 

A dança do lundutambém de Moritz Rugendas, 1835. 

De fato, houve uma maior aceitação do lundu do que outras manifestações dos negros da colônia, especialmente as religiosas, os chamados “calundus”. “Kalundu”, aliás, é visto como aportuguesamento de “Kilundu” (do quimbundo) que para o angolano António de Assis Júnior, em seu Dicionário de Kimbundo-Português, significa “Espírito.| Ser do mundo invisível.| Magnetismo”, correspondendo ainda à cerimônia de chamamento desses espíritos. O termo “lundu” pode ter origem nesse termo “calundu”, o que ocorreu não só no Brasil, mas também Angola.
Não obstante, o interesse pelo lundu foi tamanho que ele não se restringiu apenas às fronteiras coloniais, sendo também incorporado à modinha (o que facilitaria sua aceitação na metrópole) e depois levado a Portugal.


Representação do lundu na cidade de Lisboa, conforme gravura de Sketches of Portuguese Life, de A.P.D.G., sob o título Begging for the Festival of N.S. D’Atalaya. (A.P.D.G, 1826, p. 284).

Não se sabe se o introdutor do lundu em Portugal foi o mulato brasileiro Domingos Caldas Barbosa (mesmo introdutor da modinha em solo luso) ou, como sugere José Ramos Tinhorão, em Os Negros em Portugal, se foram os aventureiros portugueses que regressaram a Portugal com seus baús cheios de ouro, depois de enriquecer na colônia durante o período da mineração, a chamada “corrida do ouro”. Mas o fato é que também o lundu, tal como a modinha, foi eruditizado em Portugal, tonando-se uma dança de salão, já bem diferente daquela praticada pelos negros nos terreiros e com a umbigada devidamente disfarçada em mesura, como ressalta Mozart de Araújo (1964).
Em inícios do séculos XIX, Carl Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix presenciaram a prática do lundu também na Bahia, durante agradáveis jantares: “Nesses jantares, aparece no fim um grupo de músicos, cujos acordes, às vezes desafinados, convidam ao lundú, que as senhoras costumam dansar [sic] com muita graça.” (MARTIUS; SPIX, 1938, vol. II, p. 293). Os viajantes também coligiram espécimes musicais durante suas viagens, entre eles dois lundus, Uma Mulata Bonita e o conhecido Landum, incluídos no anexo de seu Reise in Brasilien, ou Viagem pelo Brasil.
O lundu também despertou especial interesse nos autores de teatro, tanto em Portugal quanto no Brasil, integrando entremeses e teatros de revistas, onde sua sensualidade servia bem para o teor cômico-jocoso das peças. Sobre esta questão, Rui Vieira Nery também nos chama a atenção para o caráter histriônico da poética dos lundus:
“Tanto as descrições literárias como as reproduções iconográficas mostram que o lundum era originalmente dançado de forma extremamente sensual pelos escravos africanos, com um típico balanceio em que os corpos dos bailarinos se tocavam regularmente à altura do ventre (a chamada umbigada), numa nítida sugestão do acto sexual. Escusado será dizer que o lundum de salão tinha por certo um carácter mais comedido, mas os poemas – que muitas vezes continham palavras e expressões idiomáticas em criolo – estão quase sempre recheados de subentendidos e jogos de palavras de natureza sensual que são por vezes hilariantes (em Esta Noite, Ó Céus, que Dita, de José Francisco Leal, por exemplo, o rapaz declara que nunca esquecerá ‘o ardor das pimentinhas’ do ‘guisadinho’ que lhe foi servido pelo seu ‘benzinho’..em sonhos, é claro).” (NERY, n.p., grifos do autor).

Entretanto, músicos eruditos consagrados e tidos como sérios como Carlos Gomes e Villa-Lobos também compuseram lundus.
Alcançaram grande popularidade os lundus Lá no Largo da Sé, de Cândido Inácio da Silva, Lundu da Marrequinha, de Francisco Manoel da Silva, Eu não gosto de outro amor, do Padre Teles, Onde vai Senhor Pereira Morais, de Domingos da Rocha Mussurunga, e Os Beijos do Frade, de Henrique Alves de Mesquita.
Com o advento dos fonogramas, o lundu foi o primeiro gênero musical gravado no Brasil, sendo o lundu Isto é Bom, de Xisto Bahia, interpretado por Bahiano, o primeiro registro fonográfico brasileiro, gravado em 1902. Entre finais do século XIX e inícios do século XX, o lundu foi cedendo espaço para o maxixe, especialmente nas representações dos teatros de revista, por isso o lundu é considerado pai do maxixe e, consequentemente, avô do samba, mas podemos, de uma forma geral, ao lado da modinha (avó), chamá-lo de avô de toda a música popular brasileira.


Referências Bibliográficas:


ANDRADE, Mário de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia/ Brasília:Ministério da Cultura/São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, 1989.
A.P.D.G.. Sketches of Portuguese Life, manners, costume, and character. London: printed for Geo. B. Whittaker, printed by R. Gilbert, 1826.
ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundu do século XVIII. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1963.
ASSIS JÚNIOR, António. Dicionário Kimbundo-Português, Linguístico, Botânico, Histórico e Corográfico. Seguido de um índice alfabético dos nomes próprios. Luanda: Edição de Argente, Santos C.a, L.da., [s/d].
GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas [edição eletrônica]. São Paulo: DCL, 2013.
KIEFER, Bruno. A modinha e o lundu. Porto Alegre: Movimento/ UFRGS, 1977.
MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von; SPIX, Johann Baptiste. Viagem pelo Brasil. 4 vols.. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. Tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer.
MONTEIRO, José Fernando S.. A modinha brasileira: Trajetória e veleidades (séculos XVIII-XX). Dissertação (170 pp.). Mestrado em História do Império Português, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Nova de Lisboa, 2015.
__________. Mini História da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Edição do Autor, 2016.
NERY, Rui Vieira. Encarte. In: LISBOA, Segréis de. Música de Salão do Tempo de D. Maria I. Modinhas, Cançonetas e Instrumentais [Registro sonoro]. [S.I.]: Movieplay, 1993. (CD). n.p..
__________; MORAIS, Manuel. Modinhas, Lunduns e Cançonetas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.
RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann & C., 1835.
SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 2001.
SARMENTO, Alfredo de. Sertões D’Africa (Apontamentos de Viagem). Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1880.
SEVERIANO, Jairo. Uma História da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 2008.
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular de Índios, Negros e Mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972.
__________. Os Negros em Portugal. Lisboa: Editora Caminho, 1988.
__________. Domingos Caldas Barbosa: O poeta da viola, da modinha e do lundu. São Paulo: Editora 34, 2004.





[1] Umbigada em quimbundo tem o nome de semba, palavra que hoje corresponde a uma dança e música angolanas e que no Brasil originou a palavra “samba”.


Texto originalmente publicado no site Musica Brasilis. Disponível em: http://musicabrasilis.org.br/temas/lundu-origem-da-musica-popular-brasileira

O Lundu



O lundu provém da música praticada pelos negros africanos da região do Congo e Angola, trazidos para o Brasil como escravos a partir do século XVI. Caracterizado tanto como dança quanto como gênero musical, o lundu foi muito praticado no Brasil Colônia, sendo o primeiro gênero musical de matriz africana plenamente aceito pela sociedade branca colonial e terminou por constituir a base da musicalidade brasileira.
O viajante português Alfredo de Morais Sarmento, que visitou a África no século XIX, descreveu uma dança de nome “batuque”, que encontrou no Congo e classificou como “essencialmente lasciva”, capaz de reproduzir os “instinctos brutaes” daqueles povos. Ainda segundo Sarmento: “Em Loanda [...], o batuque consiste tambem n’um circulo formado pelos dançadores, indo para o meio um preto ou preta que depois de executar vários passos, vai dar uma embigada, a que chamam semba, na pessoa que escolhe, a qual vai para o meio do circulo, substituil-o. (SARMENTO, 1880, p. 127).
A descrição de Sarmento coincide com o retrato que o poeta Tomás Antônio Gonzag faz, no Brasil, do lundu e do batuque, ainda em finais do século XVIII, também descrevendo a “umbigada”:
 “Aqui lascivo amante sem rebuço
À torpe concubina oferta o braço:
Ali mancebo ousado assiste e faia
À simples filha, que seus pais recatam.
A ligeira mulata, em trajes de homens,
Dança o quente lundu e o vil batuque;

[...]

Umas vezes suspende ao ar o corpo;
Outras vezes carrega sobre a tábua,
E desta sorte faz que as belas moças,
Movidas do balanço, deem no vento
Milhares e milhares de embigadas.” (GONZAGA, 2013,  pp. 103-104).

É certo que o lundu se originou do batuque trazido pelos negros da África, mas vale lembrar que, ao menos no Brasil, “batuque” era um nome genérico com o qual se designava qualquer música ou dança dos negros. Outro termo genérico no período colonial era “calundu”, servindo para se referir às práticas religiosas dos negros. O nome “lundu” é possivelmente uma corruptela de “calundu”.
A palavra “lundu” aparece pela primeira vez em uma carta de D. José da Cunha Grã Athayde e Mello, que foi governador de Pernambuco entre 1768 e 1769, defendendo certo tipo de baile praticado pelos negros da colônia. A carta, de 1780, foi transcrita por Francisco Augusto Pereira da Costa no artigo Folk-Lore Pernambucano, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1907, nela Athayde e Mello diz:
“Os pretos divididos em nações e com instrumentos proprios de cada uma, dançam e fazem voltas como arlequins, e outros dançam com diversos movimentos do corpo, que, ainda que não sejam os mais indecentes, são como os fandangos em Castella, o fôfas de Portugal, o lundum dos brancos e pardos daquelle paiz:” (ATHAYDE E MELLO apud PEREIRA DA COSTA, 1907, p. 204).
O lundu teria então incorporado os estalidos de dedo que se acredita ter vindo do fandango dos espanhóis. Do batuque o lundu assimilou o gesto característico da umbigada (já praticado na África), o qual, além de indicar o dançarino que vai substituir aquele que está no centro do círculo, também representa o clímax da dança permeada de sensualidade e languidez. A música do lundu termina por acompanhar a dança. Monótono e repetitivo, mas voluptuoso e lascivo, o lundu encontrou na distante colônia portuguesa da América ambiente favorável para se desenvolver, apesar das perseguições sofridas pelos negros quanto às suas práticas culturais.
Percebemos no entanto, como Athayde e Mello nos demonstra, que se o lundu é uma música e uma dança originalmente praticada pelos negros, aos poucos inclui também mestiços e brancos. Nas imagens abaixo percebemos claramente esta aculturação. A primeira mostra um batuque praticado por negros, tal como chega ao Brasil trazido pelos negros escravos, ainda que esses negros já estivessem aparentemente adaptados ao solo brasileiro, com uma casa-grande ao fundo. As duas seguintes mostram a “dança do lundu”, todavia enquanto uma mostra apenas negros, com uma casa simples ao fundo e sem maiores recursos instrumentais, a outra mostra um grupo maior e etnicamente diversificado, com um casal de brancos ao centro, dançando ao som de uma viola (instrumento orginalmente de brancos), e a presença de pessoas aparentemente abastadas e até de um religioso, com uma casa ampla, vistosa e avarandada ao fundo e uma, entre os poucos negros, cuida de alimentar a fogueira, demonstrando sua baixa condição[1].



A dança do batuque (Danse Batuca). Fonte: RUGENDAS, 1835, p. 277.





A dança do lundu (Danse Landu). Fonte: RUGENDAS, 1835, p. 278.





A dança do lundu (Danse Landu). Fonte: RUGENDAS, 1835, p. 217.



Entre os indígenas, os viajantes Carl von Martius e Johann Spix, descrevem uma dança dos Puris em que:
“As mulheres remexíam os quadrís fortemente, ora para frente, ora para trás, e os homens davam umbigadas; incitados pela música, pulavam fora da fila, para saudar, dêsse modo, aos assistentes. [...] Esta dansa, cuja pantomima parece significar os instintos sexuais, tem muita semelhança com o batuque etiópico, e talvez passado dos negros para os indígenas americanos.” (MARTIUS; SPIX, 1938, p. 345).
Percebemos então que o lundu, e a umbigada, chega a todas as etnias presentes no período colonial e também a variados estratos da sociedade. Aos poucos o lundu dos terreiros, já com as devidas modificações, também vai ser dançado nos salões da nobreza “com a umbigada característica do batuque disfarçada em mesura”, como nos informa Mozart de Araújo (1964, p. 23), sendo apreciado também pela aristocracia. Isso não só no Brasil, mas também em Portugal, onde o lundu chamava a atenção pela “exoticidade” e para onde foi levado possivelmente durante o século XVIII pelo poeta mulato Domingos Caldas Barbosa ou pelos aventureiros que vieram ao Brasil em busca de ouro. Lá, passou a dividir espaço com a modinha, com quem já havia se hibridado antes na colônia.
O lundu, enquanto gênero musical também foi assimilado pelos autores de teatro, integrando entremezes e revistas, nos quais sua sensualidade era aproveitada para cenas cômico-jocosas. Com o desaparecimento do lundu, o maxixe seria aproveitado para o mesmo fim, abrindo depois espaço para o samba.
Também foram muitos os lundus gravados, a partir do advento dos fonogramas, que mantinham letras cômicas ou de duplo sentido. Vale destacar que a primeira canção gravada no Brasil foi o lundu Isto é Bom, de Xisto Bahia, gravado por Bahiano, pela Casa Edison, em 1902.
Segundo Dilmar Miranda:
“O lundu, como registro da rítmica sincopada binária simples, constitui valioso exemplar de como a polirritmia originária afro ainda presente na música popular contemporânea de povos afro-latinos, se perdeu no tempo, no trajeto da constituição de um gênero de afro-brasileira. É impossível saber como e em que exato momento isso se deu. Atualmente, a polirritmia continua sendo praticada nos cultos do candomblé ou em alguma das danças dramáticas tradicionais como o bumba-meu-boi, espécie de nichos da tradição e preservação da rítmica original.” (MIRANDA, 2009, p. 35).
Temos ainda, no Pará, a representação do lundu marajoara, da Ilha de Marajó, extremamente lascivo, se assemelhando ao semba angolano, notadamente, ambos de mesma origem remota.

Conclusão.

Percebemos que a cultura e musicalidade dos negros, especialmente do lundu, é amplamente assimilada pelos habitantes da colônia, integrado pelas diferentes etnias e camadas sociais desse período. Devemos destacar, entretanto, que, apesar da condição de servidão, havia uma certa tolerância a certas práticas culturais dos negros. O jesuíta André João Antonil, em sua obra Cultura e Opulência do Brasil, publicado em 1711, já aconselhava os senhores a permitir que os negros se alegrassem e praticassem sua cultura, afirmando que:
“Negarlhes totalmente os seus folguedos, que saõ o unico alivio do seu cativeiro, he querellos desconsolados,& melancolicos, de pouca vida,& saude. Por tanto naõ lhes estranhem os Senhores o crearem seus Reys, cantar,& bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do anno,& o alegraremse innocentemente á tarde depois de terem feito pela manhã a suas festas de Nossa Senhora do Rosario, de São Benedito,& do Orago da Capella do Engenho, sem gasto dos Escravos, acudindo o Senhor com sua liberalidade aos Juízes, & dandolhes algum premio do seu continuado trabalho.” (ANTONIL, 1711, p. 28).
Essa certa “liberalidade” (que não excede as muitas perseguições e proibições às manifestações culturais dos escravos), dinamizou a interculturalidade entre os negros e os outros habitantes da colônia, interação essa que sem dúvida é responsável pela integração e permanência de elementos da cultura negra no Brasil atual, embora também tenha havido perdas.
São reconhecidas as diferenças que se estabeleceram entre reinóis e colonos no Brasil, a colônia da América atribuiu certas características (”amolecimento”) aos colonos que se devem em muito à distância e ao clima tropical brasileiro. Sem ter como recorrer à metrópole, os colonos terminavam assimilando as culturas índia e negra. No que concerne ao clima, apesar de os portugueses terem boa aclimatabilidade, como já apontou Gilberto Freyre (2003, p. 72), os negros tinham certa vantagem, por já estarem acostumados aos trópicos africanos, o que resultou no fato de suas práticas culturais serem realizadas de forma semelhante como a que se fazia na África, obviamente adaptadas aos recursos que agora dispunham. Essa melhor adaptação aos climas quentes por parte dos negros (vide colonização de Angola), serve também de recurso para a estruturação dos colonos, que sem dúvidas tomam a adaptação dos negros à terra como modelo.
Todas essas características foram reforçadas a partir do século XIX, quando em meio ao processo de Independência, se procurava no período colonial (incluindo-se ai a cultura dos negros) elementos para se construir uma identidade nacional autenticamente brasileira. De fato, os negros são responsáveis por muitas características atribuídas ao povo brasileiro, a calorosidade, a alegria exacerbada, o gosto musical predominante, o paladar, o charme e a reconhecida sensualidade, são inegavelmente traços da cultura negra no Brasil. Inegavelmente o lundu também está nas origens do processo de globalização da música brasileira, pois, como vimos, antecede diretamente o samba, na linha formadora deste gênero, e o samba, além de tornar-se símbolo nacional, foi sistematicamente exportado e internacionalizado, já a partir dos anos 1930.
Etnomusicologicamente falando, a música tem papel preponderante na aculturação da cultura de matriz africana no Brasil, pois é uma manifestação primitiva e natural dos negros, presente em seus festejos, lutas e práticas religiosas, veículos pelos quais ocorrem as interações culturais entre os negros e com os demais povos. O lundu tem ainda maior destaque, pois, como vimos, foi a primeira manifestação dos negros aceita e assimilada socialmente pelos brancos. Através da dança e da música do lundu, a sociedade brasileira incorporou traços da cultura dos negros. O lundu esteve presente tanto nos terreiros a céu aberto, quanto nos salões aristocráticos e também nos teatros e lares, entre boêmios e músicos eruditos, fazendo o intercâmbio cultural para a consolidação da cultura negra no Brasil.



Referências bibliográficas.

ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Lisboa: Na Officina Real Deslandesiana, 1711.
ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundu no século XVIII: Uma pesquisa histórica e bibliográfica. São Paulo: Ricordi, 1963.
CASTAGNA, Paulo. A modinha e o lundu nos séculos XVIII e XIX. Apostila do curso História da Música Brasileira, Instituto de Artes da UNESP. São Paulo: [S/I], 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: A formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48ª edição rev.. São Paulo: Global, 2003.
GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. [edição eletrônica]. São Paulo: DCL, 2013.
LISBOA, Segréis de. Modinhas e Lunduns dos séculos XVIII e XIX. Movieplay, 1997.
Mário de Andrade – Missão de Pesquisas Folclóricas. Disponível em: <http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/> Acesso em: 23 abr. 2015.
MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von; SPIX, Johann Baptiste. Viagem pelo Brasil. vol. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. Tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer.
MIRANDA, Dilmar. Nós a música popular brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2009.
NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos. Inventário e patrimônio cultural no Brasil. História, São Paulo, vol. 26, nº 02, pp. 257-268, 2007.
PINTO, Tiago de Oliveira. Etnomusicologia: 100 anos: 100 anos de Etnomusicologia – E a ‘era fonográfica’ da disciplina no Brasil. In: LÜHNING, Angela E. (org.). Anais do II Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia. Salvador: UFBA, 2005.
Plataforma Lattes. Disponível em: < http://lattes.cnpq.br/> Acesso em: 23 abr. 2015.
RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann & C., 1835.
SANDRONI, Carlos. Apontamentos sobre a história e o perfil institucional da etnomusicologia no Brasil. Revista USP, São Paulo, nº 77, mar./mai. pp. 66-75, 2008.
SARMENTO, Alfredo de. Sertões D’Africa (Apontamentos de Viagem). Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1880.
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular de Índios, Negros e Mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972.
TRAVASSOS, Elizabeth. John Blacking ou uma humanidade sonora saudavelmente organizada. Cadernos de Campo, São Paulo, nº 16, pp. 191-200, 2007.




[1] Ver também: CASTAGNA, Paulo. A modinha e o lundu nos séculos XVIII e XIX. Apostila do curso História da Música Brasileira, Instituto de Artes da UNESP. São Paulo: [S/I], 2003.






Este texto é parte do artigo "Lundu: Um Olhar Etnomusicológico" apresentado no V Congresso Internacional do Núcleo de Estudos das Américas - NUCLEAS, UERJ, 17-21 out. 2016.

A Etnomusicologia.

A Etnomusicologia completou 110 anos em 2015, ela surge como disciplina no início do século XX, a partir da musicologia comparada. Esta última se caracteriza como um campo da musicologia inaugurado por Guido Adler na tentativa de analisar a música dos povos não europeus, das culturas ágrafas, não ocidentais, justapondo a ciência histórica e a ciência musicológica. Neste campo Adler ainda engloba o folclore europeu e a estes estudos chama de “musikologie”, que corresponde a investigação e comparação musical para fins etnográficos.
A proposta de Adler de separar a música ocidental da não-ocidental, ou oriental, se faz perceber ainda hoje, refletindo até mesmo na chamada world music, caracterizada pelas músicas populares e hibridismos de todo o mundo, geralmente extraocidental. Por todas estas questões Guido Adler é considerado o precursor da musicologia comparada, embora se julgue que talvez ignorasse a verdadeira importância dos sistemas musicais não ocidentais.
Outro personagem importante no desenvolvimento da musicologia comparativa é Alexander John Ellis, físico e fonólogo inglês que se preocupou em examinar as particularidades de escalas e afinações dos instrumentos orientais, através de equipamentos de medições acústicas. Ao contrário de Adler, Ellis não se importava tanto com os conceitos ou pré-conceitos da musicologia histórica e defendeu a comparação como metodologia mais apropriada para o estudo das músicas não-ocidentais.
Os trabalhos de Adler e Ellis incidiram ao menos em dois fatores fundamentais para o surgimento da Etnomusicologia: o reconhecimento de que a música ocidental não é regida por leis universais e o fato de a cultura musical do ocidente não ser a única e nem modelo obrigatório para a prática musical para as outras partes do mundo.
Em 1900, Carl Stumpf também contribui com o campo da musicóloga comparada ao medir as escalas dos instrumentos e fazer experimentos de percepção musical e algumas gravações com um grupo de músicos saídos do Sião (atual Tailândia) para uma apresentação na Universidade de Berlim. Essas gravações tornam-se a primeira coleção de fonogramas existente. Stumpf conclui que a ideia de “desafinado” é por si só uma questão etnológica, estar “fora do tom” é, portanto, estar fora dos padrões comuns do mundo musical próprio, sendo, notadamente, considerado “afinado”, o padrão ocidental.
Quanto as gravações, o fonógrafo criado por Thomas Edison em 1877, vai ter papel fundamental nas pesquisas etnográficas, possibilitando não só as gravações, mas também o armazenamento das mesmas, ainda que inicialmente de forma limitada, em pequenos cilindros de cera, ocasionando o surgimento de arquivos, capazes de armazenar grande quantidade de documentação sonora, como o Wiener Phonogrammarchiv, de Viena, a Société d’Anthropologie, de Paris, e o Berliner Phonogrammarchiv, de Berlim.
Em Berlim, o continuador da obra de Carl Stumpf foi Erich Moritz von Hornbostel, que, embora fosse químico, se preocupou em ampliar rapidamente a coleção iniciada por Stumpf e pretendia também recolher amostras de músicas de todas as partes do globo, acreditando que assim resolveria questões básicas da musicologia através de um estudo comparado.
A musicologia comparada recorre cada vez mais aos recursos tecnológicos e assimila destas a vontade de inovar. E é inovando que efetivamente esses precursores da musicologia comparativa edificam as estruturas para o surgimento de uma nova disciplina, a Etnomusicologia.
A Etnomusicologia nasce em 1905 quando Erich Hornbostel é convidado para dirigir o Arquivo Fonográfico de Berlim, publicando na véspera de assumir, junto com Otto Abraham, o artigo Über die Bedeutung des Phonographen für vergleichende Musikwissenschaft [Sobre a importância do fonógrafo para o trabalho musicológico comparativo], onde coloca a necessidade de os autores buscarem compreender as diferenças musicais a partir das especificidades culturais. Assim que assume o cargo de diretor, Hornbostel publica o artigo Problemas da Musicologia Comparativa, testemunhando o nascimento da nova disciplina.
O nome etnomusicologia, apesar de já existir desde 1900, não é amplamente usado inicialmente. A primeira vez que o termo etnomusicologia aparece é na obra Musicologica: A study of the nature of Ethnomusicology, its problems, methods, and representative personalities [Musicologica: Um estudo da natureza da Etnomusicologia, seus problemas, métodos e personalidades representativas] (1955), do holandês Jaap Kunst.
No pós-guerra, a Etnomusicologia migra para os Estados Unidos e, em 1955, é fundada a Society for Ethnomusicology. Nas décadas seguintes são publicados os livros The Anthropology of Music [A Antropologia da Música] (1964), de Alan P. Meriam, Theory and Method in Ethnomusicology [Teoria e Método na Etnomusicologia] (1964), de Bruno Nettl, e The Ethnomusicologist [O Etnomusicologista] (1971), de Mantle Hood, que passam a ditar os termos no que se refere a Etnomusicologia.

Outro nome a integrar o seleto grupo dos autores de referência na Etnomusicologia é o britânico John Blacking e seu livro How Musical is Man? [Quão Musical é o Homem?], publicado em 1973, está entre os mais citados desta área de estudos, a que ele próprio identifica como Antropologia da Música. Blacking foi crucial no destino da disciplina e ainda estabeleceu um centro de formação em Etnomusicologia na Queen’s University of Belfast, na Irlanda do Norte, atraindo pesquisadores de todo o mundo, inclusive brasileiros.

A Etnomusicologia no Brasil.

No Brasil, a Etnomusicologia chega através de alemães que fizeram as primeiras gravações fonográficas no país, integrando uma missão austríaca dirigida por Richard Wettstein, em 1901. Mas as coleções mais expressivas foram as dos antropólogos Wilhelm Kissenberth e Theodor Koch-Grünberg, feitas entre 1908 e 1913 e que consistiam em coleta de material da cultura indígena para o Museu de Antropologia de Berlim.
O primeiro brasileiro a tomar parte neste processo foi Edgard Roquette Pinto (também grande pioneiro da radiodifusão no Brasil) que realizou gravações com fonógrafo entre os indígenas do noroeste do Mato Grosso, em 1912. Na década seguinte, Mário de Andrade, entusiasmado com a obra de Koch-Grünberg, solicita ao arquivo fonográfico de Berlim cópias das gravações feitas na Amazônia e das análises musicais de Koch-Grünberg, além de um fonógrafo para utilização em campo. Esse fonógrafo, que chega em 1937, é usado por Olga Praguer Coelho para registrar cantigas do candomblé baiano. Nesse mesmo período, já se começava a utilizar o gravador elétrico, melhor e mais adequado ao trabalho de campo.
Em 1938, Mário de Andrade, então Diretor do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, financiado por este mesmo departamento, realizou a Missão de Pesquisas Folclóricas coletando originais da expressão popular do Norte e Nordeste do Brasil, no afã de salvar essas manifestações ambiguamente ameaçadas pela crescente urbanização e auxiliadas pelos consideráveis avanços tecnológicos da época.
A Missão de Mário de Andrade constitui hoje um registro precioso do patrimônio imaterial brasileiro através da produção de um amplo acervo que conta com 1.066 fotos, 9 rolos de filme, 168 discos em 78 rpm, 770 objetos e vinte cadernetas de campo, material esse que, acurado pela folclorista Oneyda Alvarenga, resultou na coleção Arquivo Folclórico, composta pelas obras Melodias Registradas por Meios Não Mecânicos, vol. I (1946), e Catálogo Ilustrado do Museu do Folclore, vol. II (1948), e também na coleção Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro, composta pelo material audível, editado em 5 volumes, entre 1948 e 1956.
Entretanto, a disciplina de Etnomusicologia só avança no Brasil a partir da década de 1980. Manuel Veiga foi o primeiro brasileiro a concluir um doutorado em Etnomusicologia, em 1981 na University of California (UCLA), Los Angeles, onde defendeu a tese Brazilian Ethnomusicology: Amerindian Phases [Etnomusicologia Brasileira: Fases Ameríndias].
Em 1982, Kilza Setti defende na Universidade de São Paulo sua tese Ubatuba nos cantos das praias: Estudo de caiçara paulista e de sua criação musical, junto ao Doutorado em Ciências Sociais, sob orientação do antropólogo João Baptista Borges Pereira. Esse exemplo dá mostras de como a Etnomusicologia no Brasil ainda se escorava em outras disciplinas neste período. Dois anos depois, José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segato defendem juntos seus doutorados na Queen’s University of Belfast, sob orientação de John Blacking.
No final da década de 1980, três novos doutorados em Etnomusicologia realizados por brasileiros: Marcos Branda Lacerda, Angela Lühning e Tiago de Oliveira Pinto, todos na Alemanha. No início da década de 1990 mais três doutorados referentes à Etnomusicologia feitos por brasileiros no exterior: Elizabeth Lucas, na Universidade do Texas; Marta Ulhôa, na Cornell University; e Samuel Araújo, na Universidade de Illinois. Samuel Araújo também cria em 1995 o Laboratório de Etnomusicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Outros pesquisadores de destaque neste período são Elizabeth Travassos e Rafael José de Meneses Bastos, como nos fala Carlos Sandroni:
“Bastos publicou sua importante dissertação de mestrado, A Musicológica Kamayurá: para uma Antropologia da Comunicação no Alto-Xingu, em 1978. O livro foi favoravelmente resenhado por Anthony Seeger no Yearbook for Traditional Music de 1984, e representou sem dúvida um marco na lenta maturação de uma etnomusicologia brasileira.” (SANDRONI, 2008, p. 68).
Desde a década de 1980, Manuel Veiga já procurava agrupar os interessados em Etnomusicologia no Brasil através da organização das Jornadas de Etnomusicologia na Universidade Federal da Bahia. Em 2000 Rosângela Pereira de Tugny também reuniu muitos interessados em Etnomusicologia no Encontro Internacional de Músicas Africanas e Indígenas no Brasil. Esses e outros eventos incentivaram a criação da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET), em 2001, tendo como primeiro presidente Carlos Sandroni, que permaneceu no cargo por dois mandatos consecutivos. Também em 2001, Sandroni publica o livro Feitiço Decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), resultado de sua tese de doutorado defendida na Université de Tours, na França.

Atualmente a ABET se encontra em seu XIV Encontro Nacional e há inúmeros grupos de pesquisa sobre a Etnomusicologia, além de muitos periódicos que abrem espaço para o tema, entre estes se destaca a revista eletrônica da ABET, Música e Cultura, criada em 2006.


Referências bibliográficas.

ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Lisboa: Na Officina Real Deslandesiana, 1711.
ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundu no século XVIII: Uma pesquisa histórica e bibliográfica. São Paulo: Ricordi, 1963.
CASTAGNA, Paulo. A modinha e o lundu nos séculos XVIII e XIX. Apostila do curso História da Música Brasileira, Instituto de Artes da UNESP. São Paulo: [S/I], 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: A formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48ª edição rev.. São Paulo: Global, 2003.
GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. [edição eletrônica]. São Paulo: DCL, 2013.
LISBOA, Segréis de. Modinhas e Lunduns dos séculos XVIII e XIX. Movieplay, 1997.
Mário de Andrade – Missão de Pesquisas Folclóricas. Disponível em: <http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/> Acesso em: 23 abr. 2015.
MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von; SPIX, Johann Baptiste. Viagem pelo Brasil. vol. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. Tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer.
MIRANDA, Dilmar. Nós a música popular brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2009.
NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos. Inventário e patrimônio cultural no Brasil. História, São Paulo, vol. 26, nº 02, pp. 257-268, 2007.
PINTO, Tiago de Oliveira. Etnomusicologia: 100 anos: 100 anos de Etnomusicologia – E a ‘era fonográfica’ da disciplina no Brasil. In: LÜHNING, Angela E. (org.). Anais do II Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia. Salvador: UFBA, 2005.
Plataforma Lattes. Disponível em: < http://lattes.cnpq.br/> Acesso em: 23 abr. 2015.
RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann & C., 1835.
SANDRONI, Carlos. Apontamentos sobre a história e o perfil institucional da etnomusicologia no Brasil. Revista USP, São Paulo, nº 77, mar./mai. pp. 66-75, 2008.
SARMENTO, Alfredo de. Sertões D’Africa (Apontamentos de Viagem). Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1880.
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular de Índios, Negros e Mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972.
TRAVASSOS, Elizabeth. John Blacking ou uma humanidade sonora saudavelmente organizada. Cadernos de Campo, São Paulo, nº 16, pp. 191-200, 2007.



Este texto é parte do artigo "Lundu: Um Olhar Etnomusicológico" apresentado no V Congresso Internacional do Núcleo de Estudos das Américas - NUCLEAS, UERJ, 17-21 out. 2016.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

FESTIVAIS E ETNICIDADE: BRASIL E PORTUGAL.

O Brasil sempre foi conhecido pela sua diversidade e miscigenação racial. Não por acaso, se criou no século XIX o mito do “Brasil Mestiço” e surgiu a ideia de “democracia racial”. Nos Festivais da Canção, tal como em sua antecessora, a “Era do Rádio”, não foi diferente. Podemos destacar a participação de representantes de diferentes etnias, dentro dos certames e, mesmo quando não presentes, encontram-se referências à sua cultura. Este último é o caso dos ameríndios que na canção Mira Ira, interpretada por Raíces de América, tem representação de instrumentos (flauta pã) e língua (tupi). Os afrodescendentes tem grande representação nos festivais, desde canções relacionadas à sua cultura e religiosidade até a incorporação de gêneros estrangeiros como a soul music, passando ainda pelo samba e cantiga de capoeira. O número de brancos também é expressivo nos festivais, contando com nomes que vão de Chico Buarque e Elis Regina a Oswaldo Montenegro e Lucinha Lins. E podemos incluir ainda mestiços como Jards Macalé e Jorge Ben e outros com traços como Edu Lobo, Caetano Veloso.





Do lado português (Festivais RTP), destacamos a participação de Eduardo Nascimento que, de origem angolana, foi o primeiro negro a pisar o Eurovisão (sendo inclusive usado para demonstrar integração racial entre Portugal e suas colônias). Temos ainda a canção A Tua Cor Café, que embora interpretada por uma mulher branca, Cristina Roque, faz clara alusão à aceitação racial. A cantora, de origem cabo-verdiana, Sara Tavares, também mostra um Portugal mais apto para a aceitação, o que se dinamiza com a apresentação de Tó Cruz, com Baunilha e Chocolate, outra canção que traz de forma clara a ideia de integração entre diferentes etnias. Destacamos ainda a canção O Meu Coração Não Tem Cor, interpretada por Lúcia Moniz, que fala: “Estamos de maré, vamos dançar, vem juntar o teu ao meu sabor/ Põe esta canção a navegar que o meu coração não tem cor”.



Resumo apresentado no XI Fórum da Pós-Graduação da UFRRJ, 2016.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Festival Eurovisão da Canção: 60 anos.

O Festival Eurovisão da Canção (Eurovision Song Contest – ESC) completa em 2015 sessenta anos de existência, sendo um dos mais antigos concursos televisivos do mundo e o programa favorito entre os europeus. Inspirado no Festival de San Remo (Festival dela Canzone Italiana), que teve início em 1951, o Eurovisão foi idealizado por um comitê liderado por Marcel Bezençon e concebido pela União Europeia de Radiodifusão (UER) (European Broadcasting Union – EBU) no intuito de realizar uma competição pan-europeia de música popular, o primeiro concurso musical no mundo a fazer competir diferentes países[1]. Segundo Terry Wogan: “O Festival Eurovisão da Canção é uma ideia verdadeiramente maravilhosa, a qual não suporta uma inspeção mais casual. Como alguém pode imaginar que um júri turco pode julgar uma música sueca? Como é que um croata pode avaliar um fado português? Agora, se todos cantaram em inglês ... aí está a dificuldade.”[2].
A UER foi criada em 1950 e seu primeiro nome foi Eurovision, termo cunhado em 1951 por George Campey, um dos jornalistas do tablóide inglês The Evening Standard, justamente o nome que seria atribuído ao festival de música da corporação.
Depois de uma reunião da UER, ocorrida em Mônaco, em 1955, ficou decidido que a primeira edição seria na Suíça, país sede da UER, e que jamais uma edição ocorreria no mesmo lugar do ano anterior. Deste modo, o primeiro Festival Eurovisão, ainda chamado Grand Prix Eurovision de la Chanson Européene (Grande Prêmio Eurovisão da Canção Europeia), teve lugar no dia 24 de maio de 1956, no Teatro Kursaal, em Lugano, Suíça.
Entretanto, a primeira edição do Eurovisão esteve mais para um programa de rádio, tendo em vista os poucos europeus que possuíam aparelhos de televisão em suas casas. O apresentador foi Lohengrin Filipello e o programa durou 1 hora e 40 minutos, tempo no qual os sete países concorrentes tiveram a chance de apresentar duas canções cada, que não poderiam exceder os três minutos e meio cada uma. Os artistas foram acompanhados por uma orquestra de 24 músicos, tendo Fernando Paggi como maestro. A vencedora foi a canção “Refrain”, interpretada em francês por Lys Assia, representante da Suíça. Mas como a regra não permitia que o mesmo lugar sediasse duas edições seguidas, no ano seguinte o festival se realizou em Frankfurt, Alemanha, a partir de quando cada país passou a apresentar apenas uma canção.

LISTA DOS VENCEDORES DO FESTIVAL EUROVISÃO DA CANÇÃO (1956-2015).

Ano
País vencedor
Canção
Intérprete (es)
Compositor (es)
País e cidade sede
Local do evento

1956
Suíça
Refrain
Lys Assia
Émile Gardaz/ Géo Voumard
Suíça, Lugano
Teatro Kursaal
1957
Holanda
Net als toen
Corry Brokken
Guus Jansen/ Willy van Hemert
Alemanha, Frankfurt
Großer Sendesaal des Hessischen Rundfunks
1958
França
Dors, mon amour
André Claveau
Hubert Giraud/ Pierre Delanoë
Países Baixos, Hilversum
AVRO Studios
1959
Holanda
Een beetje
Teddy Scholten
Dick Schallies/ Willy van Hemert
França, Cannes
Palais des Festivales et des Congrés
1960
França
Tom Pillibi
Jacqueline Boyer
André Popp/ Pierre Cous
Reindo Unido, Londres
Royal Festival Hall
1961
Luxemburgo
Nous les amoureux
Jean-Claude Pascal
Jacquis Datin/ Maurice Vidalin
França, Cannes
Palais des Festivales et des Congrés
1962
França
Unn premier amour
Isabelle Aubret
Claude-Henri Vic
Luxemburgo, Luxemburgo
Villa Louvigny
1963
Dinamarca
Dansevise
Grethe e Jørgen Ingmann
Otto Francker/ Sejr Volmer-Sørensen
Reino Unido, Londres
BBC Television Centre
1964
Itália
Non ho l’età
Gigliolla Cinquetti
Nicola Salerno/ Mario Panzeri
Dinamarca, Copenhagen
Tivoli Koncertsal
1965
Luxemburgo
Poupée de cire, poupée de son
France Gall
Serge Gainsbourg
Itália, Nápoles
Sala di Concerto della RAI
1966
Áustria
Merci, chérie
Udo Jürgens
Udo Jürgens/ Thomas Hörbiger
Luxemburgo, Luxemburgo
Villa Louvigny
1967
Reino Unido
Puppet  on a string
Sandie Shaw
Bill Martin/ Phil Coultrer
Áustria, Viena
Großer Festsaal der Wiener Hofburg
1968
Espanha
La, la, la
Massiel
Ramón Arcusa/ Manuel de la Calva
Reino Unido, Londres
Royal Albert Hall
1969
Espanha
Vivo cantando
Salomé
Aniano Alcalde/ Maria José de Cerato
Espanha, Madri
Teatro Real
Reino Unido
Boom Bang-a-Bang
Lulu
Peter Warne/ Alan Moorhouse
Holanda
De troubadour
Leny Khur
Lenny Khur/ David Hartsema
França
Un jour, un enfant
Frida Boccara
Eddy Marnay/ Emil Stern
1970
Irlanda
All kinds of everything
Dana
Derry Lindsay/ Jackie Smith
Países Baixos, Amsterdã
Congrescentrum
1971
Mônaco
Um banc, um arbre, une rue
Séverine
Yves Dessca/ Jean-Pierre Bourtayre
Irlanda, Dublin
Gaiety Theatre
1972
Luxemburgo
Après toi
Vicky Leandros
Yves Dessca/ Klaus Munro/ Mario Panas
Escócia, Edimburgo
Usher Hall
1973
Luxemburgo
Tu te reconnaîtras
Anne-Marie David
Vline Buggy/ Claude Morgan
Luxemburgo, Luxemburgo
Nouveau Théâtre Luxembourg
1974
Suécia
Waterloo
ABBA
Stikkan Anderson/ Benny Andersson/ Björn Ulvaeus
Reino Unido, Brighton
The Dome
1975
Países Baixos
Ding a Dong
Teach-in
Esin Engin/ Will Luikinga/ Eddy Ouwens/ Fikret Senes
Suécia, Estocolmo
Stockhlmsmässan
1976
Reino Unido
Save your kisses for me
The Brotherhood of Man
Tony Hiller/ Lee Sheriden/ Martin Lee
Países Baixos, Haia
Nederlands Congresgebouw
1977
França
L’Oiseau et l’Enfant
Marie Myriam
Joe Gracy/ Jean-Paul Cara
Reino Unido, Londres
Wembley Conference Centre
1978
Israel
A-Ba-Ni-Bi
Izhar Cohen e The Alphabeta
Ehud Manor/ Nurit Hirsh
França, Paris
Palais des Congrès
1979
Israel
Hallelujah
Gali Atari e Link and Honey
Shmrit Orr/ Kobi Oshrat
Israel, Jerusalém
Centro Internacional de Convenções
1980
Irlanda
What’s another year
Johnny Logan
Shay Healy
Países Baixos, Haia
Nederlands Congresgebouw
1981
Reino Unido
Making our mind up
Bucks Fizz
 Andy Hill/ John Danter
Irlanda, Dublin
RDS Simmonscourt Pavilion
1982
Alemanha
Ein bißchen Frieden
Nicole
Bernd Meinunger/ Ralph Siegel
 Reino Unido, Harrogate
Harrogate International Centre
1983
Luxemburgo
Si la vie est cadeau
Corinne Hermès
Alain Garcia/ Pierre Millers
Alemanha, Munique
Rudi-Sedlmayer-Halle
1984
Suécia
Diggi-Loo Diggi-Ley
Herreys
Britt Lindeborg/ Torgny Söderberg
 Luxemburgo, Luxemburgo
Grand Théâtre de Luxembourg
1985
Noruega
La det swinge
Bobbysocks
Rolf Løvland
Suécia, Gotemburgo
Scandinavium
1986
Bélgica
J’aime la vie
Sandra Kim
Rosario Marino/ Jean Paul Furnémont/ Angelo Crisci
Noruega, Bergen
Grieghallen
1987
Irlanda
Hold me now
Johny Logan
Seán Sherrard
Bélgica, Bruxelas
Centenary Palace
1988
Suíça
Ne partez pas sans moi
 Céline Dion
 Nella Martinetti/ Atilla
Sereflug

Bélgica, Dublin
RDS Simmonscourt Pavilion
1989
Iuguslávia (atual Croácia)
Rock me
Riva
Stevo Cvikić/ Rajko Dujmić
Suíça, Lausanne
Salle Lys Assia, Palais de Beaulieu
1990
Itália
Insieme: 1992
Toto Cotugno
Salvatore
Cotugno
Iuguslávia (atual Croácia), Zagreb
Vatroslav Lisinski
1991
Suécia
Fångad av em stormcind
Carola
Stephan Berg
Itália, Roma
Studio 15 di Cinecittà
1992
Irlanda
Why me?
Linda Martin
Johnny Logan
Suécia, Malmö
Malmö Ice Stadium
1993
Irlanda
In your eyes
Niamh Kavanagh
Jimmy Walsh
Irlanda, Milstreet
Green Glens Arena
1994
Irlanda
Rock ’n’ roll kids
Paul Harrington e Charlie McGettigan
Brendan Grahan
Irlanda, Dublin
Point Theatre
1995
Noruega
Nocturne
Secret Garden
Petter Skavland/ Rolf Løvland
Irlanda, Dublin
Point Theatre
1996
Irlanda
The Voice
Eimear Quinn
Brendan Graham
Noruega, Oslo
Oslo Spektrum
1997
Reino Unido
Love Shine a Light
Katrina and the waves
Kimberley Rew
Irlanda, Diblin
Point Depot
1998
Israel
Diva
Dana International
Yoav Ginai/ Svika Pick
Reino Unido, Birmingham
National Indoor Arena
1999
Suécia
Take me to your heaven
Charlotte Perrelli
Marcos Ubeda/ Lars Diedricson
Israel, Jerusalém
Centro Internacional de Convenções
2000
Dinamarca
Fly on the wings of love
Olsen Brothers
Jørgen Olsen
Suécia, Estocolmo
Globen
2001
Estônia
Everybody
Tanel Padar, Dave Benton e 2XL
Maian-Anna Kärmas/ Ivar Must
Dinamarca, Copenhagen
Parken
2002
Letônia
I Wanna
Marie N
Marija Naumova/ Marats Samauskis
Estônia, Tallinn
Saku Suurhall
2003
Tuquia
Everyway that i can
Sertab Erener
Demir Demirkan
Letônia, Riga
Skonto Hall
2004
Sérvia e Montenegro
Lane Moje
Željko Joksimović e Ad Hoc Orchestra
Željko Joksimović
Turquia, Istambul
Abdi Ipekçi Arena
2005
Romênia
Let me try
Luminiţa Anghel e Sistem
Cristin Faur
Ucrânia, Kiev
Palace of Sports
2006
Finlândia
Hard Rock Hallelujah
Lordi
Mr. Lordi
Grécia, Atenas
Olympic Indoor Hall
2007
Sérvia
Molitva
Marija Šerifović
Saša Milošević Mare/ Vladimir Graić
Finlândia, Helsinque
Hartwall Areena
2008
Rússia
Believe
Dima Bilan
Dima Bilan/ Jim Beanz
Sérvia, Belgrado
Beogradska Arena
2009
Noruega
Fairytale
Alexander Rybak
Alexander Rybak
Rússia, Moscou
Olimplisky Indoor Arena
2010
Alemanha
Satellite
Lena Meyer-Landrut
Julie Frost/ Dane John Gordon
Noruega, Oslo
Fornebu Arena
2011
Azerbaijão
Running Scared
Ell e Nikki
Stefan Örn/
Sandra Bjurman/
Iain Farquharson
Alemanha, Düsseldorf
Esprit Arena
2012
Suécia
Euphoria
Loreen
Thomas G:son/ Peter Boström
Azerbaijão, Baku
Baku Crystal Hall
2013
Dinamarca
Only teardrops
Emmelie de Forest
Lise Cabble/ Julia Fabrin Jakobsen/ Thomas Stengaard
Suécia, Malmö
Malmö Arena
2014
Áustria
Rise Like a Phoenix
Conchita Wurst
Charly Mason/ Joey Patulka/ Ali Zuckowski/ Julian Maas
Dinamarca, Copenhagen
B&W Hallerne
2015
Suécia
Heroes
Måns Zelmerlöw
Anton Malmberg Hård af Segerstad/ Joy Deb/ Linnea Deb
Áustria, Viena
Wiener Stadhalle

De lá para cá o Festival Eurovisão da Canção passou por inúmeras reestruturações e se ampliou enormemente. Em 1968, o nome em inglês para o festival, Eurovision Song Contest Grand Prix, muda para Eurovision Song Contest, hoje nome oficial do evento. No mesmo ano o Eurovisão tem sua primeira transmissão a cores, em alguns países, apesar de serem poucos os espectadores com TV em cores em suas residências. A transmissão na atualidade é feita via rádio, televisão e também Internet, através dos canais membros da UER e do canal oficial do evento (www.eurovision.tv/), atingindo um público de cerca de 600 milhões de pessoas em todo o mundo, tornando o Eurovisão um megaevento assistido em todo o planeta. No canal do evento no Youtube, os números aumentam, em sete anos foram feitos 2.500 uploads de vídeos sobre o festival, que juntos totalizam 1 bilhão de visualizações. O público feminino parece ser o mais assíduo, a estimativa é que 40% dos espectadores sejam homens e os outros 60% mulheres. Podemos dizer, como já disse Svante Stockselius, ex-Supervisor Executivo do certame, que: “Um dos mais apreciados programas de TV no mundo por cinquenta anos [atualmente sessenta anos], o Festival Eurovisão da Canção é agora maior, melhor e mais popular do que nunca”[3].
O Eurovisão é tão apreciado que em 1984 foi criada pelos euro-fãs a OGAE (Organisation Générale des Amateurs de l’Eurovision (Organização Geral dos Fãs do Eurovisão)), uma organização internacional que reuni uma rede de 43 fãs-clubes do festival, dentro e fora da Europa. Também são inúmeros os sitesblogs e perfis em redes sociais que acompanham as novidades do evento, longe de se restringirem apenas ao espaço europeu, havendo inclusive representantes brasileiros[4].
Só podem concorrer no Festival Eurovisão as emissoras membro da UER. Os países escolhem as canções representantes através de seleções nacionais que podem ser através de festivais, reality shows[5] ou seleções internas das emissoras. Segundo Jorge Mangorrinha:
“Na década de 1990, deu-se uma verdadeira revolução no mapa da Europa e nos países a concurso na Eurovisão. Um conjunto de novos Estados da ex-Juguslávia (1993) e outros da Europa Central e Oriental, incluindo a Federação Russa (1994), fizeram aumentar, numa primeira fase, o número de participantes para duas dezenas e meia, para atingir mais de 40 países em algumas das recentes edições. Pela Eurovisão, já desfilaram mais de um milhar de canções.”[6].
Desta forma, o número de países concorrentes aumentou dos sete iniciais para os trinta e quatro da atualidade, fora o país sede e o Big 5 (grupo ao qual pertencem o Reino Unido, Espanha, França, Alemanha e Itália, que tem sua participação assegurada no evento por serem os maiores contribuidores financeiros da UER), totalizando quarenta países. Em 2008 e 2011 esse número chegou a 43 países.
O festival teve ao longo de sua história concorrentes de dentro e de fora da Europa, reunindo participantes também da Ásia, África e até Oceania (a Austrália foi convidada a participar em 2015). A Irlanda é hoje o país que mais venceu o certame, num total de sete vitórias, seguida pela Suécia, com seis vitórias, e pela França, Luxemburgo e Reino Unido, com cinco vitórias cada. Malta, Chipre, Islândia e Portugal (país que mais participou entre todas as edições do Eurovisão), nunca venceram o certame[7].
O sistema atual de votação é complexo: os espectadores são convidados a votar em suas canções favoritas, através do televoto (aplicativo, telefone ou SMS), sendo que não se pode votar na canção representante do país onde o espectador se encontra. Isso faz com que surjam os chamados voting blocs (ou “votos de vizinhança”), caso em que países vizinhos votam nas canções uns dos outros. Outro grande fator de auxílio na votação é o número de imigrantes que cada país possui em território europeu. O voto do público equivale a 50% da votação, os outros 50% ficam a cargo de um júri nacional encontrado em cada país, que lista as canções concorrentes de acordo com a sua preferência. Essa combinação passará depois para o Eurovision system, que consiste na distribuição dos pontos de acordo com o ranking montado, ficando o primeiro lugar com 12 pontos, o segundo com 10 pontos e o terceiro com 8 pontos, a partir daí e até o décimo lugar os pontos são distribuídos de forma decrescente. Os países abaixo da 10ª colocação não recebem pontos. A votação inicia logo após a apresentação da última canção, com o tradicional bordão: “Start voting now!” (“Comece a votar agora!”); e termina com o também tradicional: “Stop voting now!” (“Pare de votar agora!”).
Atualmente o Eurofestival é realizado no formato de duas semifinais e uma final, todas ocorrendo numa mesma semana, a chamada Eurovision Week. Na segunda-feira desta semana é tradicionalmente realizada uma festa de boas-vindas, a Mayor’s Reception, com a participação do prefeito da cidade e das delegações dos países concorrentes. Todas as noites desta mesma semana também ocorre o Euroclub, um ambiente dançante para o qual todos os credenciados são convidados. Simultaneamente ao certame funciona também o Eurovision Village, espaço criado para abrigar eventos relacionados ao Eurovisão. No dia das semifinais ocorre mais um ensaio geral e duas conferências de imprensa, uma antes (com todos os concorrentes) e outra depois (apenas com os classificados).
O vencedor do Eurovisão ganha um troféu, flores e o direito de no ano seguinte ver representado seu o país, que passa ser a sede do evento. Não há premiação em dinheiro, tendo em vista a representatividade do mérito da vitória. Mas o festival também tem uma premiação bem inusitada, o Prêmio Barbara Dex, que elege o concorrente mais mal vestido do evento e foi criado em referência à representante belga de 1993, a cantora Barbara Dex, que se apresentou com um figurino considerado de mau gosto.
Não obstante, em 2015 o Festival Eurovisão da Canção completou sessenta anos de existência e para comemorar esta data foi realizado o Eurovision Song Festival Greatest’s Hits, evento que apresentou grandes sucessos da história do Eurovisão, gravado em 31 de março no auditório do Eventim Apollo Hammersmith, em Londres, transmitido pela BBC e reprisado por outras emissoras membros da UER.
Também em 2015 se realizou a sexagésima edição do Eurovisão, desta vez sediado em Viena, Áustria (48 anos depois de sua última vitória), entre os dias 19 e 23 de maio, no Wiener Stadhalle, maior centro de eventos da Áustria e um dos maiores da Europa. Os números mostram que o Festival Eurovisão é de fato grandioso, concorreram 40 países, o público estimado foi de 16 mil pessoas por dia de evento e foram gastos em torno de 35 milhões de euros – 25 milhões fornecidos pela emissora anfitriã, a ORF, e os outros 10 milhões ficaram por conta da cidade de Viena, sede do evento.[8] A construção do palco do Wiener Stadhalle, contou com dezenas de trabalhadores, que também colaboraram na construção da Green room (uma espécie de sala de espera dos concorrentes) e do cenário que incluiu um painel de LED, um conjunto de cilindros luminosos formando um olho gigante, uma enorme quantidade de luzes, algumas delas sobre o público simulando ondas do mar, e muitos efeitos especiais.
Nesse certame de 2015, além dos 39 países que de fato concorreram ao prêmio, como dissemos, também houve a participação da Austrália que foi convidada a participar devido ao apreço que os australianos têm pelo Eurovisão, evento que há 30 anos é transmitido no país. Apesar de poder ser votada, caso ocorresse uma vitória da Austrália (que ficou com o quinto lugar), a sede do próximo festival seria em uma cidade europeia e a organização seria conjunta entre a SBS, emissora australiana, e uma emissora membro da UER.
Um estudo, de 2005[9], analisou a fórmula das canções “eurovisivas”. Segundo este estudo as canções tem as seguintes características: “1) andamento rápido e ritmo cativante, 2) letras de fácil memorização e repetitivas, 3) um contraste harmônico ou dinâmico no refrão, 4) alguma mudança fundamental levando a 5) um final claramente definido, mais 6) uma dança atraente e 7) figurinos.”[10]. Podemos acrescentar que as canções apresentadas no Eurofestival, geralmente, se dividem em dançantes, românticas ou catárticas, buscando a abstração dos expectantes. Segundo John Kennedy O’Connor:
“A maioria das entradas tratam do tema do amor, mas você também vai encontrar canções sobre o sol, lua, estrelas, céu, cometas e outros corpos celestes. Fantoches, bonecos, palhaços e carrosséis tem um papel importante na história do Eurovisão, tal como as canções sobre lugares europeus ou ainda destinos longínquos como Colorado, São Francisco, Brasil e Lusitânia. Particularmente atente para os corações batendo boom, boom boom, boom, boom, badadoum e boom bang-a-bang. Há inúmeras canções sobre a música em si, incluindo referências a grandes compositores como Purcel, Puccini, Offenbach, Debussy, Gerschwin, Chopin e Beethoven, e isso é apenas a entrada da Áustria em 1980! Talvez o mais surpreendente de tudo, é que você sempre vai encontrar um canção sobre o próprio Eurovisão.”[11].
 Falamos que o Eurovisão é um concurso onde diferentes canções de diferentes países competem, mas segundo Irving Wolther, o Eurofestival é mais do que uma competição musical, vindo a polarizar audiências e ter a mesma importância nos diversos países concorrentes, possibilitando ainda o intercâmbio entre ideias e culturas. Para demonstrar as diferenças e analisar a importância e interconexão entre os vários países, Wolther dividiu o festival em sete “dimensões de significado”, as quais têm como base as especificidades estruturais e históricas do concurso. São elas: “A dimensão midiática”, “A dimensão musical”, “A dimensão econômico-musical”, “A dimensão política”, “A dimensão nacional-cultural”, “A dimensão nacional econômica” e “A dimensão competitiva”[12].



[1] As informações aqui encontradas foram, em maior parte, retiradas do site oficial do evento, Eurovision Song Contest, e do site português Festivais da Canção, mas também há informações retiradas do Youtube e outros sites diversos. Ver: Eurovision Song Contest. Disponível em: <http://www.eurovision.tv/> Acesso em: 10 jan. 2015. Ver também: Festivais da Canção. Disponível em: <https://festivaiscancao.wordpress.com/> Acesso em: 05 fev. 2015
[2] “The Eurovision Song Contest is a truly wonderful idea, which doesn’t bear the most casual inspection.  How can anybody imagine that a Turkish jury can judge a Swedish song? How does a Croatian assess a Portuguese fado? Now, if everyone sung English… there’s the rub.” WOGAN In GAMBACCINI, Paul (et al.).The Complete Eurovision Song Contest Companion. London: Pavilion Books, 1998, pp. 07-08, tradução nossa.
[3] One of the most enjoyed TV shows in the world for over fifty years [nowadays sixty years], the Eurovision Song Contest is now bigger, better and more popular than ever.” STOCKSELIUS apud O’CONNOR In: O’CONNOR, J. K.. The Eurovision Song Contest: The Official HistoryLondon: Carlton Books, 2010. p. 04, tradução nossa.
[4] Ver: ESCBRASIL. Disponível em: <http://escbrasil.com/>. Ver também: Brasil Eurovision. Disponível em: <https://brasileurovision.wordpress.com/>. Ver também: Eurovision Brazil. Disponível em: <https://www.facebook.com/eurovisionbrazil>. Ver também: Brasil Eurovision. Disponível em: <https://twitter.com/eurovisionbr>.
[5]  A escolha de artistas para o Eurovisão através de reality shows, por exemplo, abre caminho para inúmeros novos artistas ainda iniciantes, o que não ocorria anteriormente, quando havia um predomínio de artistas já consagrados.
[6] MANGORRINHA, Jorge. Cultura Eurovisiva: Canções, Política, Identidades e o Caso Português. Lisboa: IECCPMA/ CLEPUL, 2015, p. 10.
[7] Ver: MONTEIRO, José Fernando. S.. Festival RTP da Canção: Os cinquenta anos do festival eurovisivo português. Revista Brasileira de Estudos da Canção, Natal, nº 6, pp. 73-89, jul.-dez. 2014. Ver também: NEVES, Mauro. O fracasso português: Por que Portugal nunca conseguiu vencer o Eurovisão?. Bulletin of the Faculty of Foreign StudiesSophia University, nº 46, pp. 91-128, 2011.
[8] No certame de 2012, realizado em Baku, Azerbaijão, os gastos foram ainda maiores, cerca de 75 milhões de euros.
[9] Boom Bang-a-Bang and Ding-a-Dong: Pop Science Reveals “Waterloo” as the perfect Eurovision Song apud RAYKOFF, Ivan; TOBIN, Robert Deam. A Song for Europe: Popular Music and Politics in the Eurovision Song Contest. Hampshire: Ashgate, 2007. p. xix.
[10] “1) fast pace and catchy rhythms, 2) memorable and repetitive lyrics, 3) a harmonically or dynamically contrasting chorus, 4) a key change leading to 5) a clearly defined finish, plus 6) an appealing dance routine and 7) costumes.” RAYKOFF, Ivan; TOBIN, Robert Deam. A Song for Europe: Popular Music and Politics in the Eurovision Song Contest. Hampshire: Ashgate, 2007, p. xix, tradução nossa.
[11] “The majority of the entries deal with the subject of love, but you’ll also find songs about the sun, moon, stars, heavens, comets and other celestial bodies. Puppets, dolls, clowns and merry-go-rounds play a large part in Eurovision history, as do songs about European places as well as such far-flung destinations as Colorado, San Francisco, Brazil and Lusitania. Particularly watch out for hearts going boom, boom boom, boom, boom, badadoum and boom bang-a-bang. There are countless songs about music itself, including references to such great composers as Purcel, Puccini, Offenbach, Debussy, Gerschwin, Chopin and Beethoven, and that’s just the Austrian entry from 1980! Perhaps most surprisingly of all, you’ll even find one song about Eurovision itself.” O’CONNOR, J. K.. The Eurovision Song Contest: The Official History. London: Carlton Books, 2010. p. 06, tradução nossa.
[12] Ver: Wolther, Irving. More than just music: the seven dimensions of the Eurovision Song ContestPopular Music, vol. 31, jan. 2012, pp 165-171


Este texto é parte de: MONTEIRO, José Fernando S.. Festival Eurovisão da Canção: 60 anos: Multiculturalismo, Diversidade e Alteridade. Veredas da História, [online], v.8, n.1, 2015, p. 121--139. Disponível em: http://www.seer.veredasdahistoria.com.br/ojs-2.4.8/index.php/veredasdahistoria/article/view/165