O lundu
tem uma proveniência adversa. Sabe-se que deriva da musicalidade dos negros de
Angola e do Congo, que levaram para o Brasil a sua tradicional dança da
umbigada (semba, em quimbundo[1]).
No século XIX, o português Alfredo de Morais Sarmento descreveu uma dança
“essencialmente lasciva”, capaz de reproduzir os “instinctos brutaes” dos povos
africanos. Segundo o viajante: “Em Loanda [...], o batuque consiste tambem n’um circulo formado pelos dançadores, indo
para o meio um preto ou preta que depois de executar vários passos, vai dar uma
embigada, a que chamam semba, na
pessoa que escolhe, a qual vai para o meio do circulo, substituil-o”. (SARMENTO,
1880, p. 127). É certo que essa dança a qual Sarmento se refere, de nome
“batuque”, foi a mesma que chegou ao Brasil com os negros escravizados. No
Brasil, aliás, “batuque” se tornou um termo genérico para denominar todas as
manifestações dos negros e com toda a certeza é dessa manifestação que se
originaram muitas outras práticas dos negros, inclusive o que depois foi
chamado de “lundu”. Mas, o poeta Tomás Antônio Gonzaga, que viveu não somente
em Minas Gerais, mas também na Bahia, durante sua juventude, chega a mencionar
tanto o batuque quanto o lundu no mesmo poema, dando à ideia de formas
diferenciadas:
“Aqui lascivo amante sem rebuço
À
torpe concubina oferta o braço:
Ali
mancebo ousado assiste e faia
À
simples filha, que seus pais recatam.
A
ligeira mulata, em trajes de homens,
Dança
o quente lundu e o vil batuque;” (GONZAGA, 2013, p. 500).
A
umbigada se encontra presente em praticamente todas as danças de origem
africana existentes no Brasil, incluindo o lundu. Segundo Carlos Sandroni:
“No
lundu todos os participantes, inclusive os músicos, formam uma roda e acompanham
ativamente, com palmas e cantos, a dança propriamente dita, que é feita por um
par de cada vez. [e completa] [...] A ‘umbigada’ é o gesto coreográfico que
consiste no choque dos ventres, ou umbigos [...]. Em traços gerais, elas
consistiam no seguinte: todos os participantes formam uma roda. Um deles se
destaca e vai para o centro, onde dança individualmente até escolher um
participante do sexo oposto para substituí-lo (os dois podem executar uma
coreografia – de par separado – antes que o primeiro se reintegre ao círculo).
(SANDRONI, 2001, pp. 64-84).
Até
mesmo por tribos indígenas a umbigada foi incorporada e, devido a sua
lascividade, José Ramos Tinhorão (1972) chegou a dizer que a umbigada é uma “representação
dramática de um jogo amoroso capaz de conduzir ao clímax sexual”. Também por
isso, por ser considerada lasciva e chula, a dança dos negros chegou a ser
proibida no Brasil, mas foi justamente sua languidez que despertou enorme
apreço em muitos colonos, a ponto de começarem a praticar o lundu em seus
festejos. Desta forma, aos poucos o lundu se tornou a primeira manifestação
originada entre os negros a ser aceita pela sociedade branca da colônia.
A dança do lundu, de Moritz Rugendas, 1835.
A
dança do lundu, também de Moritz Rugendas, 1835.
De fato,
houve uma maior aceitação do lundu do que outras manifestações dos negros da
colônia, especialmente as religiosas, os chamados “calundus”. “Kalundu”, aliás,
é visto como aportuguesamento de “Kilundu” (do quimbundo) que para o angolano
António de Assis Júnior, em seu Dicionário
de Kimbundo-Português, significa “Espírito.| Ser do mundo invisível.|
Magnetismo”, correspondendo ainda à cerimônia de chamamento desses espíritos. O
termo “lundu” pode ter origem nesse termo “calundu”, o que ocorreu não só no
Brasil, mas também Angola.
Não
obstante, o interesse pelo lundu foi tamanho que ele não se restringiu apenas
às fronteiras coloniais, sendo também incorporado à modinha (o que facilitaria
sua aceitação na metrópole) e depois levado a Portugal.
Representação do lundu na cidade de Lisboa, conforme gravura de Sketches
of Portuguese Life, de A.P.D.G., sob o título Begging for the Festival
of N.S. D’Atalaya. (A.P.D.G, 1826, p. 284).
Não se
sabe se o introdutor do lundu em Portugal foi o mulato brasileiro Domingos
Caldas Barbosa (mesmo introdutor da modinha em solo luso) ou, como sugere José
Ramos Tinhorão, em Os Negros em Portugal, se foram os aventureiros
portugueses que regressaram a Portugal com seus baús cheios de ouro, depois de
enriquecer na colônia durante o período da mineração, a chamada “corrida do
ouro”. Mas o fato é que também o lundu, tal como a modinha, foi eruditizado em
Portugal, tonando-se uma dança de salão, já bem diferente daquela praticada
pelos negros nos terreiros e com a umbigada devidamente disfarçada em mesura,
como ressalta Mozart de Araújo (1964).
Em
inícios do séculos XIX, Carl Philipp von Martius e Johann Baptiste von Spix presenciaram
a prática do lundu também na Bahia, durante agradáveis jantares: “Nesses
jantares, aparece no fim um grupo de músicos, cujos acordes, às vezes
desafinados, convidam ao lundú, que as senhoras costumam dansar [sic] com muita
graça.” (MARTIUS; SPIX, 1938, vol. II, p. 293). Os
viajantes também coligiram espécimes musicais durante suas viagens, entre eles
dois lundus, Uma Mulata Bonita e o
conhecido Landum, incluídos no anexo
de seu Reise in Brasilien, ou Viagem pelo Brasil.
O lundu
também despertou especial interesse nos autores de teatro, tanto em Portugal
quanto no Brasil, integrando entremeses e teatros de revistas, onde sua
sensualidade servia bem para o teor cômico-jocoso das peças. Sobre esta
questão, Rui Vieira Nery também nos chama a atenção para
o caráter histriônico da poética dos lundus:
“Tanto as descrições literárias como as reproduções iconográficas
mostram que o lundum era originalmente dançado de forma extremamente
sensual pelos escravos africanos, com um típico balanceio em que os corpos dos
bailarinos se tocavam regularmente à altura do ventre (a chamada umbigada),
numa nítida sugestão do acto sexual. Escusado será dizer que o lundum de salão
tinha por certo um carácter mais comedido, mas os poemas – que muitas vezes
continham palavras e expressões idiomáticas em criolo – estão quase sempre
recheados de subentendidos e jogos de palavras de natureza sensual que são por
vezes hilariantes (em Esta Noite, Ó Céus, que Dita, de José Francisco
Leal, por exemplo, o rapaz declara que nunca esquecerá ‘o ardor das
pimentinhas’ do ‘guisadinho’ que lhe foi servido pelo seu ‘benzinho’..em
sonhos, é claro).” (NERY, n.p., grifos do autor).
Entretanto,
músicos eruditos consagrados e tidos como sérios como Carlos Gomes e
Villa-Lobos também compuseram lundus.
Alcançaram
grande popularidade os lundus Lá no Largo da Sé, de Cândido Inácio da
Silva, Lundu da Marrequinha, de Francisco Manoel da Silva, Eu não
gosto de outro amor, do Padre Teles, Onde vai Senhor Pereira Morais,
de Domingos
da Rocha Mussurunga, e Os Beijos do Frade, de Henrique Alves de
Mesquita.
Com o
advento dos fonogramas, o lundu foi o primeiro gênero musical gravado no
Brasil, sendo o lundu Isto é Bom, de
Xisto Bahia, interpretado por Bahiano, o primeiro registro fonográfico
brasileiro, gravado em 1902. Entre finais do século XIX e inícios do século XX,
o lundu foi cedendo espaço para o maxixe, especialmente nas representações dos
teatros de revista, por isso o lundu é considerado pai do maxixe e, consequentemente,
avô do samba, mas podemos, de uma forma geral, ao lado da modinha (avó),
chamá-lo de avô de toda a música popular brasileira.
Referências
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Brasília:Ministério da Cultura/São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da
Universidade de São Paulo, 1989.
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__________.
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Editora 34, 2004.
[1]
Umbigada em quimbundo tem o nome de semba,
palavra que hoje corresponde a uma dança e música angolanas e que no Brasil
originou a palavra “samba”.
Texto originalmente publicado no site Musica Brasilis. Disponível em: http://musicabrasilis.org.br/temas/lundu-origem-da-musica-popular-brasileira