A Etnomusicologia completou 110 anos em
2015, ela surge como disciplina no início do século XX, a partir da musicologia
comparada. Esta última se caracteriza como um campo da musicologia inaugurado
por Guido Adler na tentativa de analisar a música dos povos não europeus, das
culturas ágrafas, não ocidentais, justapondo a ciência histórica e a ciência
musicológica. Neste campo Adler ainda engloba o folclore europeu e a estes
estudos chama de “musikologie”, que
corresponde a investigação e comparação musical para fins etnográficos.
A proposta de Adler de separar a música
ocidental da não-ocidental, ou oriental, se faz perceber ainda hoje, refletindo
até mesmo na chamada world music,
caracterizada pelas músicas populares e hibridismos de todo o mundo, geralmente
extraocidental. Por todas estas questões Guido Adler é considerado o precursor
da musicologia comparada, embora se julgue que talvez ignorasse a verdadeira
importância dos sistemas musicais não ocidentais.
Outro personagem importante no
desenvolvimento da musicologia comparativa é Alexander John Ellis, físico e
fonólogo inglês que se preocupou em examinar as particularidades de escalas e
afinações dos instrumentos orientais, através de equipamentos de medições
acústicas. Ao contrário de Adler, Ellis não se importava tanto com os conceitos
ou pré-conceitos da musicologia histórica e defendeu a comparação como
metodologia mais apropriada para o estudo das músicas não-ocidentais.
Os trabalhos de Adler e Ellis incidiram
ao menos em dois fatores fundamentais para o surgimento da Etnomusicologia: o
reconhecimento de que a música ocidental não é regida por leis universais e o
fato de a cultura musical do ocidente não ser a única e nem modelo obrigatório
para a prática musical para as outras partes do mundo.
Em 1900, Carl Stumpf também contribui
com o campo da musicóloga comparada ao medir as escalas dos instrumentos e
fazer experimentos de percepção musical e algumas gravações com um grupo de
músicos saídos do Sião (atual Tailândia) para uma apresentação na Universidade
de Berlim. Essas gravações tornam-se a primeira coleção de fonogramas existente.
Stumpf conclui que a ideia de “desafinado” é por si só uma questão etnológica,
estar “fora do tom” é, portanto, estar fora dos padrões comuns do mundo musical
próprio, sendo, notadamente, considerado “afinado”, o padrão ocidental.
Quanto as gravações, o fonógrafo criado
por Thomas Edison em 1877, vai ter papel fundamental nas pesquisas
etnográficas, possibilitando não só as gravações, mas também o armazenamento
das mesmas, ainda que inicialmente de forma limitada, em pequenos cilindros de
cera, ocasionando o surgimento de arquivos, capazes de armazenar grande
quantidade de documentação sonora, como o Wiener
Phonogrammarchiv, de Viena, a Société
d’Anthropologie, de Paris, e o Berliner
Phonogrammarchiv, de Berlim.
Em Berlim, o continuador da obra de Carl
Stumpf foi Erich Moritz von Hornbostel, que, embora fosse químico, se preocupou
em ampliar rapidamente a coleção iniciada por Stumpf e pretendia também
recolher amostras de músicas de todas as partes do globo, acreditando que assim
resolveria questões básicas da musicologia através de um estudo comparado.
A musicologia comparada recorre cada vez
mais aos recursos tecnológicos e assimila destas a vontade de inovar. E é
inovando que efetivamente esses precursores da musicologia comparativa edificam
as estruturas para o surgimento de uma nova disciplina, a Etnomusicologia.
A Etnomusicologia nasce em 1905 quando
Erich Hornbostel é convidado para dirigir o Arquivo Fonográfico de Berlim,
publicando na véspera de assumir, junto com Otto Abraham, o artigo Über die Bedeutung des Phonographen für vergleichende
Musikwissenschaft [Sobre a importância do fonógrafo para o trabalho
musicológico comparativo], onde coloca a necessidade de os autores buscarem
compreender as diferenças musicais a partir das especificidades culturais.
Assim que assume o cargo de diretor, Hornbostel publica o artigo Problemas da Musicologia Comparativa,
testemunhando o nascimento da nova disciplina.
O nome etnomusicologia, apesar de já
existir desde 1900, não é amplamente usado inicialmente. A primeira vez que o
termo etnomusicologia aparece é na obra Musicologica:
A study of the nature of Ethnomusicology, its problems, methods, and representative
personalities [Musicologica: Um estudo da natureza da Etnomusicologia, seus
problemas, métodos e personalidades representativas] (1955), do holandês Jaap Kunst.
No pós-guerra, a Etnomusicologia migra
para os Estados Unidos e, em 1955, é fundada a Society for Ethnomusicology. Nas décadas seguintes são publicados
os livros The Anthropology of Music
[A Antropologia da Música] (1964), de Alan P. Meriam, Theory and Method in Ethnomusicology [Teoria e Método na
Etnomusicologia] (1964), de Bruno Nettl, e The
Ethnomusicologist [O Etnomusicologista] (1971), de Mantle Hood, que passam
a ditar os termos no que se refere a Etnomusicologia.
Outro nome a integrar o seleto grupo dos
autores de referência na Etnomusicologia é o britânico John Blacking e seu
livro How Musical is Man? [Quão
Musical é o Homem?], publicado em 1973, está entre os mais citados desta área
de estudos, a que ele próprio identifica como Antropologia da Música. Blacking
foi crucial no destino da disciplina e ainda estabeleceu um centro de formação
em Etnomusicologia na Queen’s University of Belfast, na Irlanda do Norte,
atraindo pesquisadores de todo o mundo, inclusive brasileiros.
A Etnomusicologia
no Brasil.
No Brasil, a Etnomusicologia chega através
de alemães que fizeram as primeiras gravações fonográficas no país, integrando
uma missão austríaca dirigida por Richard Wettstein, em 1901. Mas as coleções
mais expressivas foram as dos antropólogos Wilhelm Kissenberth e Theodor
Koch-Grünberg, feitas entre 1908 e 1913 e que consistiam em coleta de material
da cultura indígena para o Museu de Antropologia de Berlim.
O primeiro brasileiro a tomar parte
neste processo foi Edgard Roquette Pinto (também grande pioneiro da
radiodifusão no Brasil) que realizou gravações com fonógrafo entre os indígenas
do noroeste do Mato Grosso, em 1912. Na década seguinte, Mário de Andrade,
entusiasmado com a obra de Koch-Grünberg, solicita ao arquivo fonográfico de
Berlim cópias das gravações feitas na Amazônia e das análises musicais de
Koch-Grünberg, além de um fonógrafo para utilização em campo. Esse fonógrafo,
que chega em 1937, é usado por Olga Praguer Coelho para registrar cantigas do
candomblé baiano. Nesse mesmo período, já se começava a utilizar o gravador
elétrico, melhor e mais adequado ao trabalho de campo.
Em 1938, Mário de Andrade, então Diretor
do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, financiado por este mesmo
departamento, realizou a Missão de Pesquisas Folclóricas coletando originais da
expressão popular do Norte e Nordeste do Brasil, no afã de salvar essas
manifestações ambiguamente ameaçadas pela crescente urbanização e auxiliadas
pelos consideráveis avanços tecnológicos da época.
A Missão de Mário de Andrade constitui
hoje um registro precioso do patrimônio imaterial brasileiro através da
produção de um amplo acervo que conta com 1.066 fotos, 9 rolos de filme, 168
discos em 78 rpm, 770 objetos e vinte cadernetas de campo, material esse que,
acurado pela folclorista Oneyda Alvarenga, resultou na coleção Arquivo
Folclórico, composta pelas obras Melodias
Registradas por Meios Não Mecânicos, vol. I (1946), e Catálogo Ilustrado do Museu do Folclore, vol. II (1948), e também
na coleção Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro, composta pelo
material audível, editado em 5 volumes, entre 1948 e 1956.
Entretanto, a disciplina de
Etnomusicologia só avança no Brasil a partir da década de 1980. Manuel Veiga
foi o primeiro brasileiro a concluir um doutorado em Etnomusicologia, em 1981
na University of California (UCLA),
Los Angeles, onde defendeu a tese Brazilian
Ethnomusicology: Amerindian Phases [Etnomusicologia Brasileira: Fases
Ameríndias].
Em 1982, Kilza Setti defende na
Universidade de São Paulo sua tese Ubatuba
nos cantos das praias: Estudo de caiçara paulista e de sua criação musical,
junto ao Doutorado em Ciências Sociais, sob orientação do antropólogo João
Baptista Borges Pereira. Esse exemplo dá mostras de como a Etnomusicologia no
Brasil ainda se escorava em outras disciplinas neste período. Dois anos depois,
José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segato defendem juntos seus doutorados na Queen’s University of Belfast, sob
orientação de John Blacking.
No final da década de 1980, três novos
doutorados em Etnomusicologia realizados por brasileiros: Marcos Branda
Lacerda, Angela Lühning e Tiago de Oliveira Pinto, todos na Alemanha. No início
da década de 1990 mais três doutorados referentes à Etnomusicologia feitos por
brasileiros no exterior: Elizabeth Lucas, na Universidade do Texas; Marta
Ulhôa, na Cornell University; e
Samuel Araújo, na Universidade de Illinois. Samuel Araújo também cria em 1995 o
Laboratório de Etnomusicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Outros pesquisadores de destaque neste período são Elizabeth Travassos e Rafael
José de Meneses Bastos, como nos fala Carlos Sandroni:
“Bastos publicou sua importante dissertação de
mestrado, A Musicológica Kamayurá: para
uma Antropologia da Comunicação no Alto-Xingu, em 1978. O livro foi
favoravelmente resenhado por Anthony Seeger no Yearbook for Traditional Music de 1984, e representou sem dúvida um
marco na lenta maturação de uma etnomusicologia brasileira.” (SANDRONI, 2008,
p. 68).
Desde a década de 1980, Manuel Veiga já
procurava agrupar os interessados em Etnomusicologia no Brasil através da
organização das Jornadas de Etnomusicologia na Universidade Federal da Bahia.
Em 2000 Rosângela Pereira de Tugny também reuniu muitos interessados em
Etnomusicologia no Encontro Internacional de Músicas Africanas e Indígenas no
Brasil. Esses e outros eventos incentivaram a criação da Associação Brasileira de
Etnomusicologia (ABET), em 2001, tendo como primeiro presidente Carlos
Sandroni, que permaneceu no cargo por dois mandatos consecutivos. Também em
2001, Sandroni publica o livro Feitiço
Decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), resultado
de sua tese de doutorado defendida na Université
de Tours, na França.
Atualmente a ABET se encontra em seu XIV
Encontro Nacional e há inúmeros grupos de pesquisa sobre a Etnomusicologia,
além de muitos periódicos que abrem espaço para o tema, entre estes se destaca
a revista eletrônica da ABET, Música e
Cultura, criada em 2006.
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Este texto é parte do artigo "Lundu: Um Olhar Etnomusicológico" apresentado no V Congresso Internacional do Núcleo de Estudos das Américas - NUCLEAS, UERJ, 17-21 out. 2016.
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