domingo, 20 de novembro de 2016

A Etnomusicologia.

A Etnomusicologia completou 110 anos em 2015, ela surge como disciplina no início do século XX, a partir da musicologia comparada. Esta última se caracteriza como um campo da musicologia inaugurado por Guido Adler na tentativa de analisar a música dos povos não europeus, das culturas ágrafas, não ocidentais, justapondo a ciência histórica e a ciência musicológica. Neste campo Adler ainda engloba o folclore europeu e a estes estudos chama de “musikologie”, que corresponde a investigação e comparação musical para fins etnográficos.
A proposta de Adler de separar a música ocidental da não-ocidental, ou oriental, se faz perceber ainda hoje, refletindo até mesmo na chamada world music, caracterizada pelas músicas populares e hibridismos de todo o mundo, geralmente extraocidental. Por todas estas questões Guido Adler é considerado o precursor da musicologia comparada, embora se julgue que talvez ignorasse a verdadeira importância dos sistemas musicais não ocidentais.
Outro personagem importante no desenvolvimento da musicologia comparativa é Alexander John Ellis, físico e fonólogo inglês que se preocupou em examinar as particularidades de escalas e afinações dos instrumentos orientais, através de equipamentos de medições acústicas. Ao contrário de Adler, Ellis não se importava tanto com os conceitos ou pré-conceitos da musicologia histórica e defendeu a comparação como metodologia mais apropriada para o estudo das músicas não-ocidentais.
Os trabalhos de Adler e Ellis incidiram ao menos em dois fatores fundamentais para o surgimento da Etnomusicologia: o reconhecimento de que a música ocidental não é regida por leis universais e o fato de a cultura musical do ocidente não ser a única e nem modelo obrigatório para a prática musical para as outras partes do mundo.
Em 1900, Carl Stumpf também contribui com o campo da musicóloga comparada ao medir as escalas dos instrumentos e fazer experimentos de percepção musical e algumas gravações com um grupo de músicos saídos do Sião (atual Tailândia) para uma apresentação na Universidade de Berlim. Essas gravações tornam-se a primeira coleção de fonogramas existente. Stumpf conclui que a ideia de “desafinado” é por si só uma questão etnológica, estar “fora do tom” é, portanto, estar fora dos padrões comuns do mundo musical próprio, sendo, notadamente, considerado “afinado”, o padrão ocidental.
Quanto as gravações, o fonógrafo criado por Thomas Edison em 1877, vai ter papel fundamental nas pesquisas etnográficas, possibilitando não só as gravações, mas também o armazenamento das mesmas, ainda que inicialmente de forma limitada, em pequenos cilindros de cera, ocasionando o surgimento de arquivos, capazes de armazenar grande quantidade de documentação sonora, como o Wiener Phonogrammarchiv, de Viena, a Société d’Anthropologie, de Paris, e o Berliner Phonogrammarchiv, de Berlim.
Em Berlim, o continuador da obra de Carl Stumpf foi Erich Moritz von Hornbostel, que, embora fosse químico, se preocupou em ampliar rapidamente a coleção iniciada por Stumpf e pretendia também recolher amostras de músicas de todas as partes do globo, acreditando que assim resolveria questões básicas da musicologia através de um estudo comparado.
A musicologia comparada recorre cada vez mais aos recursos tecnológicos e assimila destas a vontade de inovar. E é inovando que efetivamente esses precursores da musicologia comparativa edificam as estruturas para o surgimento de uma nova disciplina, a Etnomusicologia.
A Etnomusicologia nasce em 1905 quando Erich Hornbostel é convidado para dirigir o Arquivo Fonográfico de Berlim, publicando na véspera de assumir, junto com Otto Abraham, o artigo Über die Bedeutung des Phonographen für vergleichende Musikwissenschaft [Sobre a importância do fonógrafo para o trabalho musicológico comparativo], onde coloca a necessidade de os autores buscarem compreender as diferenças musicais a partir das especificidades culturais. Assim que assume o cargo de diretor, Hornbostel publica o artigo Problemas da Musicologia Comparativa, testemunhando o nascimento da nova disciplina.
O nome etnomusicologia, apesar de já existir desde 1900, não é amplamente usado inicialmente. A primeira vez que o termo etnomusicologia aparece é na obra Musicologica: A study of the nature of Ethnomusicology, its problems, methods, and representative personalities [Musicologica: Um estudo da natureza da Etnomusicologia, seus problemas, métodos e personalidades representativas] (1955), do holandês Jaap Kunst.
No pós-guerra, a Etnomusicologia migra para os Estados Unidos e, em 1955, é fundada a Society for Ethnomusicology. Nas décadas seguintes são publicados os livros The Anthropology of Music [A Antropologia da Música] (1964), de Alan P. Meriam, Theory and Method in Ethnomusicology [Teoria e Método na Etnomusicologia] (1964), de Bruno Nettl, e The Ethnomusicologist [O Etnomusicologista] (1971), de Mantle Hood, que passam a ditar os termos no que se refere a Etnomusicologia.

Outro nome a integrar o seleto grupo dos autores de referência na Etnomusicologia é o britânico John Blacking e seu livro How Musical is Man? [Quão Musical é o Homem?], publicado em 1973, está entre os mais citados desta área de estudos, a que ele próprio identifica como Antropologia da Música. Blacking foi crucial no destino da disciplina e ainda estabeleceu um centro de formação em Etnomusicologia na Queen’s University of Belfast, na Irlanda do Norte, atraindo pesquisadores de todo o mundo, inclusive brasileiros.

A Etnomusicologia no Brasil.

No Brasil, a Etnomusicologia chega através de alemães que fizeram as primeiras gravações fonográficas no país, integrando uma missão austríaca dirigida por Richard Wettstein, em 1901. Mas as coleções mais expressivas foram as dos antropólogos Wilhelm Kissenberth e Theodor Koch-Grünberg, feitas entre 1908 e 1913 e que consistiam em coleta de material da cultura indígena para o Museu de Antropologia de Berlim.
O primeiro brasileiro a tomar parte neste processo foi Edgard Roquette Pinto (também grande pioneiro da radiodifusão no Brasil) que realizou gravações com fonógrafo entre os indígenas do noroeste do Mato Grosso, em 1912. Na década seguinte, Mário de Andrade, entusiasmado com a obra de Koch-Grünberg, solicita ao arquivo fonográfico de Berlim cópias das gravações feitas na Amazônia e das análises musicais de Koch-Grünberg, além de um fonógrafo para utilização em campo. Esse fonógrafo, que chega em 1937, é usado por Olga Praguer Coelho para registrar cantigas do candomblé baiano. Nesse mesmo período, já se começava a utilizar o gravador elétrico, melhor e mais adequado ao trabalho de campo.
Em 1938, Mário de Andrade, então Diretor do Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, financiado por este mesmo departamento, realizou a Missão de Pesquisas Folclóricas coletando originais da expressão popular do Norte e Nordeste do Brasil, no afã de salvar essas manifestações ambiguamente ameaçadas pela crescente urbanização e auxiliadas pelos consideráveis avanços tecnológicos da época.
A Missão de Mário de Andrade constitui hoje um registro precioso do patrimônio imaterial brasileiro através da produção de um amplo acervo que conta com 1.066 fotos, 9 rolos de filme, 168 discos em 78 rpm, 770 objetos e vinte cadernetas de campo, material esse que, acurado pela folclorista Oneyda Alvarenga, resultou na coleção Arquivo Folclórico, composta pelas obras Melodias Registradas por Meios Não Mecânicos, vol. I (1946), e Catálogo Ilustrado do Museu do Folclore, vol. II (1948), e também na coleção Registros Sonoros de Folclore Musical Brasileiro, composta pelo material audível, editado em 5 volumes, entre 1948 e 1956.
Entretanto, a disciplina de Etnomusicologia só avança no Brasil a partir da década de 1980. Manuel Veiga foi o primeiro brasileiro a concluir um doutorado em Etnomusicologia, em 1981 na University of California (UCLA), Los Angeles, onde defendeu a tese Brazilian Ethnomusicology: Amerindian Phases [Etnomusicologia Brasileira: Fases Ameríndias].
Em 1982, Kilza Setti defende na Universidade de São Paulo sua tese Ubatuba nos cantos das praias: Estudo de caiçara paulista e de sua criação musical, junto ao Doutorado em Ciências Sociais, sob orientação do antropólogo João Baptista Borges Pereira. Esse exemplo dá mostras de como a Etnomusicologia no Brasil ainda se escorava em outras disciplinas neste período. Dois anos depois, José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segato defendem juntos seus doutorados na Queen’s University of Belfast, sob orientação de John Blacking.
No final da década de 1980, três novos doutorados em Etnomusicologia realizados por brasileiros: Marcos Branda Lacerda, Angela Lühning e Tiago de Oliveira Pinto, todos na Alemanha. No início da década de 1990 mais três doutorados referentes à Etnomusicologia feitos por brasileiros no exterior: Elizabeth Lucas, na Universidade do Texas; Marta Ulhôa, na Cornell University; e Samuel Araújo, na Universidade de Illinois. Samuel Araújo também cria em 1995 o Laboratório de Etnomusicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Outros pesquisadores de destaque neste período são Elizabeth Travassos e Rafael José de Meneses Bastos, como nos fala Carlos Sandroni:
“Bastos publicou sua importante dissertação de mestrado, A Musicológica Kamayurá: para uma Antropologia da Comunicação no Alto-Xingu, em 1978. O livro foi favoravelmente resenhado por Anthony Seeger no Yearbook for Traditional Music de 1984, e representou sem dúvida um marco na lenta maturação de uma etnomusicologia brasileira.” (SANDRONI, 2008, p. 68).
Desde a década de 1980, Manuel Veiga já procurava agrupar os interessados em Etnomusicologia no Brasil através da organização das Jornadas de Etnomusicologia na Universidade Federal da Bahia. Em 2000 Rosângela Pereira de Tugny também reuniu muitos interessados em Etnomusicologia no Encontro Internacional de Músicas Africanas e Indígenas no Brasil. Esses e outros eventos incentivaram a criação da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET), em 2001, tendo como primeiro presidente Carlos Sandroni, que permaneceu no cargo por dois mandatos consecutivos. Também em 2001, Sandroni publica o livro Feitiço Decente: Transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933), resultado de sua tese de doutorado defendida na Université de Tours, na França.

Atualmente a ABET se encontra em seu XIV Encontro Nacional e há inúmeros grupos de pesquisa sobre a Etnomusicologia, além de muitos periódicos que abrem espaço para o tema, entre estes se destaca a revista eletrônica da ABET, Música e Cultura, criada em 2006.


Referências bibliográficas.

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GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. [edição eletrônica]. São Paulo: DCL, 2013.
LISBOA, Segréis de. Modinhas e Lunduns dos séculos XVIII e XIX. Movieplay, 1997.
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MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von; SPIX, Johann Baptiste. Viagem pelo Brasil. vol. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. Tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer.
MIRANDA, Dilmar. Nós a música popular brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2009.
NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos. Inventário e patrimônio cultural no Brasil. História, São Paulo, vol. 26, nº 02, pp. 257-268, 2007.
PINTO, Tiago de Oliveira. Etnomusicologia: 100 anos: 100 anos de Etnomusicologia – E a ‘era fonográfica’ da disciplina no Brasil. In: LÜHNING, Angela E. (org.). Anais do II Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia. Salvador: UFBA, 2005.
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RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann & C., 1835.
SANDRONI, Carlos. Apontamentos sobre a história e o perfil institucional da etnomusicologia no Brasil. Revista USP, São Paulo, nº 77, mar./mai. pp. 66-75, 2008.
SARMENTO, Alfredo de. Sertões D’Africa (Apontamentos de Viagem). Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1880.
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular de Índios, Negros e Mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972.
TRAVASSOS, Elizabeth. John Blacking ou uma humanidade sonora saudavelmente organizada. Cadernos de Campo, São Paulo, nº 16, pp. 191-200, 2007.



Este texto é parte do artigo "Lundu: Um Olhar Etnomusicológico" apresentado no V Congresso Internacional do Núcleo de Estudos das Américas - NUCLEAS, UERJ, 17-21 out. 2016.

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