Culture é uma das duas ou três palavras mais complicadas da
língua inglesa. Isso ocorre em parte por causa de seu intrincado
desenvolvimento histórico em diversas línguas europeias, mas principalmente
porque passou a ser usada para referir-se a conceitos importantes em diversas
disciplinas intelectuais distintas e em diversos sistemas de pensamento
distintos e incompatíveis.
A p.i. é o latim cultura,
da p.r. colere. Colere tinha uma gama de significados: habitar, cultivar, proteger,
honrar com veneração. Alguns desses significados finalmente se separaram nos
substantivos derivados, embora ainda haja superposições ocasionais. Dessa
maneira, “habitar” desenvolveu-se do latim colonus
até chegar a colony [colônia]. “Honrar
com veneração” desenvolveu-se do latim cultus
até chegar a cult [culto]. Cultura assumiu o sentido principal de
cultivo ou cuidado, incluindo, como em Cícero, cultura animi, embora com significados medievais subsidiários de
honra e adoração (cf., em inglês, cultura
como “adoração” em Caxton, 1483). As formas francesas do latim cultura eram couture, do francês antigo, que a partir de então desenvolveu seu
próprio sentido especializado, e mais tarde culture,
que por volta do início do S15 havia passado para o inglês. O sentido
primordial referia-se, então, a lavoura, isto é, o cuidado com o crescimento
natural.
Em todos os primeiros usos, cultura era um substantivo que
se referia a um processo: o cuidado com
algo, basicamente com as colheitas ou com os animais. O subsidiário coulter (relha de arado) tomou um rumo linguístico
diferente a partir do latim culter
(relha de arado) passando pelo inglês antigo culter até chegar às ortografias inglesas variantes culter, colter, coulter e, até
mesmo no início do S17, culture (Webster,
A Duqueza de Malfi, III, ii: “relhas
de arado [alhures] em brasas”). Isso proporcionou outra base para a etapa
seguinte e importante de significado, por metaforização. A partir do princípio
do S16, o cuidado com o crescimento natural ampliou-se para incluir o processo
de desenvolvimento humano, e esse, ao lado do significado original relativo a
lavoura, foi o sentido principal até o final do S18 e início do S19. Daí More: “para
a cultura e o proveito de suas mentes”; Bacon: “a cultura e o cultivo das
mentes” (1605); Hobbes: “uma cultura de suas mentes” (1651); Johnson: “ela
negligenciou a cultura de seu discernimento” (1759). Em diversos momentos do
desenvolvimento, ocorreram duas mudanças cruciais: em primeiro lugar, certo
grau de adaptação à metáfora, que tornou direto o sentido de cuidado humano; em
segundo lugar, uma extensão dos processos específicos ao processo geral, que a
palavra poderia carregar de modo abstrato. Naturalmente, é a partir deste
último desenvolvimento que o substantivo independente cultura iniciou sua complicada história moderna, mas o processo de
mudança é tão intrincado, e os sentidos latentes às vezes se aproximam tanto,
que não é possível afirmar uma data definitiva. Como substantivo independente, cultura – processo abstrato ou o
produto de tal processo – só passa a ser importante no final do S18 e não é
comum antes de meados do S19. Há um uso interessante em Milton, na segunda
edição revisada de The Readie and Easie
Way to Establish a Free Commonwealth (1660):
difundir muito mais conhecimento e civilidade, e até
religião, por todos os lugares do país, comunicando o calor natural do governo
e da cultura de modo mais bem distribuído a todas as partes extremas, que hoje
permanecem no aturdimento e na ignorância.
Aqui, o sentido metafórico (“calor natural”) ainda parece
presente, e ainda se diz civilidade
(cf. CIVILIZAÇÃO) quando, no S19, se esperaria normalmente cultura. Contudo, pode-se igualmente ler “governo e cultura” em um
sentido bastante moderno. De acordo com o teor de sua argumentação, Milton
escreve sobre um processo social geral, e esse é um estágio definido de
desenvolvimento. Na Inglaterra setecentista, esse processo geral adquiriu
associações definidas de classe apesar de cultivo
e cultivado serem mais comumente
usados com esse significado. Mas há uma carta de 1730 (do bispo de Killala para
Mrs. Clayton, citada em England in the
Eighteenth Century, de Plumb) que tem esse sentido claro: “não tem sido
costume entre pessoas de nascimento ou cultura criar seus filhos para a Igreja”.
Akenside (Pleasures of Imagination,
1744) escreveu: “nem berço de ouro nem cultura podem outorgar”; Wordsworth
escreveu: “onde se desconhece completamente a graça da cultura” (1805); e Jane
Austen (Emma, 1816): “todas as
vantagens da disciplina e da cultura”.
Desse modo, fica claro que cultura se desenvolvia em inglês para alguns de seus sentidos
modernos antes dos efeitos decisivos de um novo movimento social e intelectual.
No entanto, para seguir a evolução por meio desse movimento, no fim do S18 e
princípios do S19, temos de examinar também os desenvolvimentos em outras
línguas, especialmente no alemão.
No francês, até o S18, cultura
sempre esteve acompanhada de uma forma gramatical indicativa do assunto que se
cultivava, tal qual no uso em inglês já assinalado. Sua utilização ocasional
como substantivo independente data de meados o S18, bem posterior a usos
ocasionais semelhantes em inglês. O substantivo independente civilização também surgiu em meados do
S18; a partir de então, sua relação com cultura
é muito complicada (cf. CIVILIZAÇÃO e a discussão a seguir). Havia nessa época
um desenvolvimento importante em alemão: a palavra foi emprestada do francês,
primeiro grafada Cultur e, a partir
do S19, Kultur. Seu principal uso era
ainda como sinônimo de civilização:
primeiro, no sentido abstrato de um processo geral de tornar-se “civilizado” ou
“cultivado”; segundo, no sentido que já fora estabelecido para civilização pelos historiadores do
Iluminismo, na popular forma setecentista das histórias universais, como uma
descrição do processo secular de desenvolvimento humano. Então, Herder
introduziu uma mudança decisiva de seu uso. Em sua obra inacabada Auch eine Philosophie der Geschichte zur
Bildung der Menscheit [Sobre a filosofia da história para a educação da humanidade]
(1784-91), ele escreveu a respeito de Cultur:
“nada é mais indeterminado que essa palavra e nada mais enganoso que sua
aplicação a todas as nações e a todos os períodos”. Ele atacava o pressuposto
das histórias universais de que “civilização” ou “cultura” – o autodesenvolvimento
histórico da humanidade – fosse o que hoje chamaríamos de processo unilinear e
conduziria ao ponto alto e dominante da cultura europeia do S18. Na verdade,
atacava o que chamava de subjugação e dominação europeias dos quatro cantos do
globo e escrevia:
Homens de todas as regiões do globo que haveis perecido ao
longo das épocas, não vivestes apenas para adubar a terra com vossas cinzas,
para que ao final dos tempos a cultura europeia derramasse felicidade sobre
vossa posteridade. A própria ideia de uma cultura europeia superior é um
insulto flagrante à majestade da Natureza.
Argumentava que era necessário, no que consistia uma
inovação decisiva, falar de “culturas” no plural: culturas específicas e
variáveis de diferentes nações e períodos, mas também culturas específicas e
variáveis dos grupos sociais e econômicos no interior de uma nação. Esse
sentido desenvolveu-se amplamente no movimento romântico como alternativa ao
ortodoxo e dominante “civilização”. Primeiro, foi usado para enfatizar as
culturas nacionais e tradicionais, incluindo o novo conceito de cultura popular
(cf. FOLK), Mais tarde, passou a ser
usado para atacar o que era visto como o caráter “MECÂNICO” (v.) da nova
civilização que então emergia: tanto por seu racionalismo abstrato quanto pela “inumanidade”
do desenvolvimento industrial da época. O termo foi usado para distinguir
desenvolvimento “humano” do “material”. Politicamente, como era frequente no
período, oscilava entre radicalismo e a reação e não raras vezes, na confusão
de importantes mudanças sociais, fundia elementos de ambos. (Também seria
necessário salientar, embora isso só aumente a real complicação, que Humboldt e
outros fizeram o mesmo tipo de distinção, principalmente entre desenvolvimento “material”
e “espiritual”, mesmo até 1900, com uma inversão dos termos: cultura material e civilização espiritual. Em geral, no entanto, predominava a
distinção oposta.)
Por outro lado, a partir da década de 1840, na Alemanha,
utilizava-se Kultur em um sentido
muito parecido com o que tivera civilização
nas histórias universais do S18. A inovação decisiva foi Allgemeine Kulturgeschichte der Menschheit – “História cultural
geral da humanidade” (1843-52) – de G. F. Klemm, que traçava o desenvolvimento
humano desde a selvageria até a liberdade, passando pela domesticação. Embora o
antropólogo norte-americano Morgan, ao rastrear estágios comparáveis, tenha
usado “sociedade antiga”, culminando
em civilização, o sentido que lhe deu
Klemm se manteve e foi seguido diretamente em inglês por Tylor em Primitive Culture (1870). O sentido
predominante nas ciências sociais modernas deve ser traçado segundo essa linha
de referência.
É possível avaliar, portanto, a complexidade do
desenvolvimento e do uso modernos da palavra. É fácil distinguir o sentido que
depende de uma continuidade literal do processo físico, como hoje em “cultura
de beterraba”, ou, na aplicação física especializada em bacteriologia desde a
década de 1880, “ cultura de germes”. Mas, quando vamos além da referência física,
temos de reconhecer três categorias amplas e ativas de uso. Já discutimos as
fontes de duas delas: (i) o substantivo independente e abstrato que descreve um
processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético, a partir do
S18; (ii) o substantivo independente, quer seja usado de modo geral ou
específico, indicando um modo particular de vida, quer seja de um povo, um
período, um grupo ou da humanidade em geral, desde Herder e Klemm. Mas também é
preciso reconhecer (iii) o substantivo independente e abstrato que descreve as
obras e as práticas da atividade intelectual e, particularmente, artística. Com
frequência, esse parece ser hoje o sentido mais difundido: cultura é música, literatura, pintura, escultura, teatro e cinema.
Um Ministério da Cultura refere-se a
essas atividades específicas, algumas vezes com o acréscimo da filosofia, do
saber acadêmico, da história. O uso (iii) é, na verdade, relativamente tardio.
É difícil datá-lo com precisão porque é, na origem, uma forma aplicada de
sentido (i): aplicou-se e transferiu-se a ideia de um processo geral de
desenvolvimento intelectual, espiritual e estético às obras e às práticas que o
representam e sustentam. Mas também se desenvolveu a partir do sentido anterior
de processo; cf. “cultura
progressiva das belas-artes”, em Millar
Historical View of the English Government, IV, 314 (1812). Em
inglês, (i) e (iii) estão ainda próximos; às vezes, por razões internas, são
indiscerníveis, como em Arnold, Culture
and Anarchy (1867); ao passo que o sentido (ii) foi decididamente
introduzido no inglês por Tylor, em Primitive
Culture (1870), na esteira de Klemm. O desenvolvimento decisivo do sentido
(ii) em inglês ocorreu no final do S19 e início do S20.
Diante dessa complexa e ainda ativa história da palavra, é
fácil reagir com a escolha de um sentido “verdadeiro”, “adequado” ou “científico”
e descartar outros sentidos por serem vagos ou confusos. Há provas dessa reação
mesmo no excelente estudo de Kroeber e Kluckhohn, Culture: a Critical Review of Concepts and Definitions, em que o
uso na antropologia nrte-americana é adotado como norma. É claro que, em uma
disciplina, é preciso esclarecer o uso conceitual. Mas, em geral, o que é
significativo é o leque e a sobreposição de sentidos. O complexo de
significados indica uma argumentação complexa sobre as relações entre
desenvolvimento humano geral e um modo específico de vida, e entre ambos e as
obras e práticas da arte e da inteligência. É particularmente interessante que,
na arqueologia e na antropologia cultural,
a referência a cultura ou a uma cultura aponte primordialmente a
produção material, enquanto na
história e nos estudos culturais a referência indique fundamentalmente os
sistemas de significação ou simbólicos. Isso confunde amiúde, mas,
ainda mais frequentemente, esconde a questão central das relações entre
produção “material” e “simbólica”, que em algumas discussões recentes – cf. meu
próprio Cultura – foram mais
relacionadas do que contrastadas. Nessa completa argumentação, há posições
fundamentalmente opostas e também efetivamente superpostas; há ainda – o que é
compreensível – muitas questões não resolvidas e respostas confusas. Mas não se
podem resolver esses argumentos e questões reduzindo-se a complexidade do uso
real. Esse ponto é relevante também aos usos de formas da palavra em outras
línguas além do inglês, em que existem variações consideráveis. O uso
antropológico é comum nos grupos linguísticos alemão, escandinavo e eslavo, mas
subordina-se de maneira distinta aos sentidos de arte e de erudição ou de um
processo geral de desenvolvimento humano em italiano e francês. Entre línguas, assim
como no interior delas, o leque e a complexidade de sentidos e referências indicam
tanto a diferença de posição intelectual quanto algum obscurecimento ou
sobreposição. Essas variações, de qualquer espécie, envolvem necessariamente
visões alternativas das atividades, relações e processos que essa palavra
complexa indica. A complexidade, vale dizer, não está, afinal, na palavra mas
nos problemas que as variações de uso indicam de maneira significativa.
É necessário examinar, igualmente, as palavras associadas e
derivadas. Cultivo e cultivado sofreram a mesma extensão
metafórica de um sentido físico para um sentido social ou educacional no S17;
eram palavras particularmente significativas no S18. Coleridge, ao fazer uma
distinção típica do início do S19 entre civilização e cultura, escreveu (1830):
“a distinção permanente, e o contraste ocasional, entre cultivo e civilização”.
O substantivo, nesse sentido, efetivamente desapareceu, mas o adjetivo ainda é
bastante comum, especialmente em relação aos costumes e gostos. O importante
adjetivo cultural parece datar da
década de 1870 e tornou-se comum por volta da década de 1890. A palavra só
esteve disponível no sentido moderno quando o substantivo independente, nos
sentidos artístico, intelectual ou antropológico, tornou-se familiar. A
hostilidade à palavra cultura em
inglês parece datar da controvérsia a respeito das posições de Arnold. Ganhou
força no final do S19 e início do S20, em associação com igual hostilidade a esteta e ESTÉTICO (v.). Sua associação
com distinções de classe produziu o arremedo culchah* [*É como soa a palavra culture
quando pronunciada por pessoas de alto nível sociocultural (N. T.)]. Havia também
uma área de hostilidade associada ao sentimento antialemão, durante e após a
Primeira Guerra, em relação à propaganda sobre Kultur. A área central de hostilidade persistiu, e um de seus
elementos foi enfatizado pela recente expressão norte-americana culture-vulture [cultura-abutre]. É
significativo que praticamente toda a hostilidade (com a única exceção da
temporária associação antialemã) tenha sido vinculada aos usos que envolviam
afirmações de conhecimento superior (cf. o substantivo INTELECTUAL),
refinamento (culchah) e distinções
entre arte “alta” (cultura) e arte e
entretenimento populares. Ela registra, portanto, uma história social real e uma
fase muito difícil e confusa do desenvolvimento social e cultural. É
interessante que o uso social e antropológico em constante expansão de cultura e cultural e de formações como subcultura
(a cultura de um grupo discernível menor) tenha ou eludido ou diminuído a
hostilidade e o mal-estar e embaraço que lhe são associados, exceto em certas
áreas (notadamente no entretenimento popular). O uso recente de culturalismo para indicar um contraste
metodológico com estruturalismo na
análise social mantém muitas das dificuldades anteriores e nem sempre evita a
hostilidade.
WILLIANS,
Raymond. Cultura. In: ________. Palavras-Chave: Um vocabulário de
cultura e sociedade. Tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. Prefácio de Maria
Elisa Cevasco. São Paulo: Editorial Boitempo, 2007, 117-124.