quarta-feira, 21 de outubro de 2015

CULTURA [culture]




            Culture é uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa. Isso ocorre em parte por causa de seu intrincado desenvolvimento histórico em diversas línguas europeias, mas principalmente porque passou a ser usada para referir-se a conceitos importantes em diversas disciplinas intelectuais distintas e em diversos sistemas de pensamento distintos e incompatíveis.
A p.i. é o latim cultura, da p.r. colere. Colere tinha uma gama de significados: habitar, cultivar, proteger, honrar com veneração. Alguns desses significados finalmente se separaram nos substantivos derivados, embora ainda haja superposições ocasionais. Dessa maneira, “habitar” desenvolveu-se do latim colonus até chegar a colony [colônia]. “Honrar com veneração” desenvolveu-se do latim cultus até chegar a cult [culto]. Cultura assumiu o sentido principal de cultivo ou cuidado, incluindo, como em Cícero, cultura animi, embora com significados medievais subsidiários de honra e adoração (cf., em inglês, cultura como “adoração” em Caxton, 1483). As formas francesas do latim cultura eram couture, do francês antigo, que a partir de então desenvolveu seu próprio sentido especializado, e mais tarde culture, que por volta do início do S15 havia passado para o inglês. O sentido primordial referia-se, então, a lavoura, isto é, o cuidado com o crescimento natural.
            Em todos os primeiros usos, cultura era um substantivo que se referia a um processo: o cuidado com algo, basicamente com as colheitas ou com os animais. O subsidiário coulter (relha de arado) tomou um rumo linguístico diferente a partir do latim culter (relha de arado) passando pelo inglês antigo culter até chegar às ortografias inglesas variantes culter, colter, coulter e, até mesmo no início do S17, culture (Webster, A Duqueza de Malfi, III, ii: “relhas de arado [alhures] em brasas”). Isso proporcionou outra base para a etapa seguinte e importante de significado, por metaforização. A partir do princípio do S16, o cuidado com o crescimento natural ampliou-se para incluir o processo de desenvolvimento humano, e esse, ao lado do significado original relativo a lavoura, foi o sentido principal até o final do S18 e início do S19. Daí More: “para a cultura e o proveito de suas mentes”; Bacon: “a cultura e o cultivo das mentes” (1605); Hobbes: “uma cultura de suas mentes” (1651); Johnson: “ela negligenciou a cultura de seu discernimento” (1759). Em diversos momentos do desenvolvimento, ocorreram duas mudanças cruciais: em primeiro lugar, certo grau de adaptação à metáfora, que tornou direto o sentido de cuidado humano; em segundo lugar, uma extensão dos processos específicos ao processo geral, que a palavra poderia carregar de modo abstrato. Naturalmente, é a partir deste último desenvolvimento que o substantivo independente cultura iniciou sua complicada história moderna, mas o processo de mudança é tão intrincado, e os sentidos latentes às vezes se aproximam tanto, que não é possível afirmar uma data definitiva. Como substantivo independente, cultura – processo abstrato ou o produto de tal processo – só passa a ser importante no final do S18 e não é comum antes de meados do S19. Há um uso interessante em Milton, na segunda edição revisada de The Readie and Easie Way to Establish a Free Commonwealth (1660):

difundir muito mais conhecimento e civilidade, e até religião, por todos os lugares do país, comunicando o calor natural do governo e da cultura de modo mais bem distribuído a todas as partes extremas, que hoje permanecem no aturdimento e na ignorância.

            Aqui, o sentido metafórico (“calor natural”) ainda parece presente, e ainda se diz civilidade (cf. CIVILIZAÇÃO) quando, no S19, se esperaria normalmente cultura. Contudo, pode-se igualmente ler “governo e cultura” em um sentido bastante moderno. De acordo com o teor de sua argumentação, Milton escreve sobre um processo social geral, e esse é um estágio definido de desenvolvimento. Na Inglaterra setecentista, esse processo geral adquiriu associações definidas de classe apesar de cultivo e cultivado serem mais comumente usados com esse significado. Mas há uma carta de 1730 (do bispo de Killala para Mrs. Clayton, citada em England in the Eighteenth Century, de Plumb) que tem esse sentido claro: “não tem sido costume entre pessoas de nascimento ou cultura criar seus filhos para a Igreja”. Akenside (Pleasures of Imagination, 1744) escreveu: “nem berço de ouro nem cultura podem outorgar”; Wordsworth escreveu: “onde se desconhece completamente a graça da cultura” (1805); e Jane Austen (Emma, 1816): “todas as vantagens da disciplina e da cultura”.
            Desse modo, fica claro que cultura se desenvolvia em inglês para alguns de seus sentidos modernos antes dos efeitos decisivos de um novo movimento social e intelectual. No entanto, para seguir a evolução por meio desse movimento, no fim do S18 e princípios do S19, temos de examinar também os desenvolvimentos em outras línguas, especialmente no alemão.
No francês, até o S18, cultura sempre esteve acompanhada de uma forma gramatical indicativa do assunto que se cultivava, tal qual no uso em inglês já assinalado. Sua utilização ocasional como substantivo independente data de meados o S18, bem posterior a usos ocasionais semelhantes em inglês. O substantivo independente civilização também surgiu em meados do S18; a partir de então, sua relação com cultura é muito complicada (cf. CIVILIZAÇÃO e a discussão a seguir). Havia nessa época um desenvolvimento importante em alemão: a palavra foi emprestada do francês, primeiro grafada Cultur e, a partir do S19, Kultur. Seu principal uso era ainda como sinônimo de civilização: primeiro, no sentido abstrato de um processo geral de tornar-se “civilizado” ou “cultivado”; segundo, no sentido que já fora estabelecido para civilização pelos historiadores do Iluminismo, na popular forma setecentista das histórias universais, como uma descrição do processo secular de desenvolvimento humano. Então, Herder introduziu uma mudança decisiva de seu uso. Em sua obra inacabada Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menscheit [Sobre a filosofia da história para a educação da humanidade] (1784-91), ele escreveu a respeito de Cultur: “nada é mais indeterminado que essa palavra e nada mais enganoso que sua aplicação a todas as nações e a todos os períodos”. Ele atacava o pressuposto das histórias universais de que “civilização” ou “cultura” – o autodesenvolvimento histórico da humanidade – fosse o que hoje chamaríamos de processo unilinear e conduziria ao ponto alto e dominante da cultura europeia do S18. Na verdade, atacava o que chamava de subjugação e dominação europeias dos quatro cantos do globo e escrevia:

Homens de todas as regiões do globo que haveis perecido ao longo das épocas, não vivestes apenas para adubar a terra com vossas cinzas, para que ao final dos tempos a cultura europeia derramasse felicidade sobre vossa posteridade. A própria ideia de uma cultura europeia superior é um insulto flagrante à majestade da Natureza.

            Argumentava que era necessário, no que consistia uma inovação decisiva, falar de “culturas” no plural: culturas específicas e variáveis de diferentes nações e períodos, mas também culturas específicas e variáveis dos grupos sociais e econômicos no interior de uma nação. Esse sentido desenvolveu-se amplamente no movimento romântico como alternativa ao ortodoxo e dominante “civilização”. Primeiro, foi usado para enfatizar as culturas nacionais e tradicionais, incluindo o novo conceito de cultura popular (cf. FOLK), Mais tarde, passou a ser usado para atacar o que era visto como o caráter “MECÂNICO” (v.) da nova civilização que então emergia: tanto por seu racionalismo abstrato quanto pela “inumanidade” do desenvolvimento industrial da época. O termo foi usado para distinguir desenvolvimento “humano” do “material”. Politicamente, como era frequente no período, oscilava entre radicalismo e a reação e não raras vezes, na confusão de importantes mudanças sociais, fundia elementos de ambos. (Também seria necessário salientar, embora isso só aumente a real complicação, que Humboldt e outros fizeram o mesmo tipo de distinção, principalmente entre desenvolvimento “material” e “espiritual”, mesmo até 1900, com uma inversão dos termos: cultura material e civilização espiritual. Em geral, no entanto, predominava a distinção oposta.)
            Por outro lado, a partir da década de 1840, na Alemanha, utilizava-se Kultur em um sentido muito parecido com o que tivera civilização nas histórias universais do S18. A inovação decisiva foi Allgemeine Kulturgeschichte der Menschheit – “História cultural geral da humanidade” (1843-52) – de G. F. Klemm, que traçava o desenvolvimento humano desde a selvageria até a liberdade, passando pela domesticação. Embora o antropólogo norte-americano Morgan, ao rastrear estágios comparáveis, tenha usado “sociedade antiga”, culminando em civilização, o sentido que lhe deu Klemm se manteve e foi seguido diretamente em inglês por Tylor em Primitive Culture (1870). O sentido predominante nas ciências sociais modernas deve ser traçado segundo essa linha de referência.
            É possível avaliar, portanto, a complexidade do desenvolvimento e do uso modernos da palavra. É fácil distinguir o sentido que depende de uma continuidade literal do processo físico, como hoje em “cultura de beterraba”, ou, na aplicação física especializada em bacteriologia desde a década de 1880, “ cultura de germes”. Mas, quando vamos além da referência física, temos de reconhecer três categorias amplas e ativas de uso. Já discutimos as fontes de duas delas: (i) o substantivo independente e abstrato que descreve um processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético, a partir do S18; (ii) o substantivo independente, quer seja usado de modo geral ou específico, indicando um modo particular de vida, quer seja de um povo, um período, um grupo ou da humanidade em geral, desde Herder e Klemm. Mas também é preciso reconhecer (iii) o substantivo independente e abstrato que descreve as obras e as práticas da atividade intelectual e, particularmente, artística. Com frequência, esse parece ser hoje o sentido mais difundido: cultura é música, literatura, pintura, escultura, teatro e cinema. Um Ministério da Cultura refere-se a essas atividades específicas, algumas vezes com o acréscimo da filosofia, do saber acadêmico, da história. O uso (iii) é, na verdade, relativamente tardio. É difícil datá-lo com precisão porque é, na origem, uma forma aplicada de sentido (i): aplicou-se e transferiu-se a ideia de um processo geral de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético às obras e às práticas que o representam e sustentam. Mas também se desenvolveu a partir do sentido anterior de processo; cf. “cultura progressiva das belas-artes”, em Millar Historical View of the English Government, IV, 314 (1812). Em inglês, (i) e (iii) estão ainda próximos; às vezes, por razões internas, são indiscerníveis, como em Arnold, Culture and Anarchy (1867); ao passo que o sentido (ii) foi decididamente introduzido no inglês por Tylor, em Primitive Culture (1870), na esteira de Klemm. O desenvolvimento decisivo do sentido (ii) em inglês ocorreu no final do S19 e início do S20.
            Diante dessa complexa e ainda ativa história da palavra, é fácil reagir com a escolha de um sentido “verdadeiro”, “adequado” ou “científico” e descartar outros sentidos por serem vagos ou confusos. Há provas dessa reação mesmo no excelente estudo de Kroeber e Kluckhohn, Culture: a Critical Review of Concepts and Definitions, em que o uso na antropologia nrte-americana é adotado como norma. É claro que, em uma disciplina, é preciso esclarecer o uso conceitual. Mas, em geral, o que é significativo é o leque e a sobreposição de sentidos. O complexo de significados indica uma argumentação complexa sobre as relações entre desenvolvimento humano geral e um modo específico de vida, e entre ambos e as obras e práticas da arte e da inteligência. É particularmente interessante que, na arqueologia e na antropologia cultural, a referência a cultura ou a uma cultura aponte primordialmente a produção material, enquanto na história e nos estudos culturais a referência indique fundamentalmente os sistemas de significação ou simbólicos. Isso confunde amiúde, mas, ainda mais frequentemente, esconde a questão central das relações entre produção “material” e “simbólica”, que em algumas discussões recentes – cf. meu próprio Cultura – foram mais relacionadas do que contrastadas. Nessa completa argumentação, há posições fundamentalmente opostas e também efetivamente superpostas; há ainda – o que é compreensível – muitas questões não resolvidas e respostas confusas. Mas não se podem resolver esses argumentos e questões reduzindo-se a complexidade do uso real. Esse ponto é relevante também aos usos de formas da palavra em outras línguas além do inglês, em que existem variações consideráveis. O uso antropológico é comum nos grupos linguísticos alemão, escandinavo e eslavo, mas subordina-se de maneira distinta aos sentidos de arte e de erudição ou de um processo geral de desenvolvimento humano em italiano e francês. Entre línguas, assim como no interior delas, o leque e a complexidade de sentidos e referências indicam tanto a diferença de posição intelectual quanto algum obscurecimento ou sobreposição. Essas variações, de qualquer espécie, envolvem necessariamente visões alternativas das atividades, relações e processos que essa palavra complexa indica. A complexidade, vale dizer, não está, afinal, na palavra mas nos problemas que as variações de uso indicam de maneira significativa.
            É necessário examinar, igualmente, as palavras associadas e derivadas. Cultivo e cultivado sofreram a mesma extensão metafórica de um sentido físico para um sentido social ou educacional no S17; eram palavras particularmente significativas no S18. Coleridge, ao fazer uma distinção típica do início do S19 entre civilização e cultura, escreveu (1830): “a distinção permanente, e o contraste ocasional, entre cultivo e civilização”. O substantivo, nesse sentido, efetivamente desapareceu, mas o adjetivo ainda é bastante comum, especialmente em relação aos costumes e gostos. O importante adjetivo cultural parece datar da década de 1870 e tornou-se comum por volta da década de 1890. A palavra só esteve disponível no sentido moderno quando o substantivo independente, nos sentidos artístico, intelectual ou antropológico, tornou-se familiar. A hostilidade à palavra cultura em inglês parece datar da controvérsia a respeito das posições de Arnold. Ganhou força no final do S19 e início do S20, em associação com igual hostilidade a esteta e ESTÉTICO (v.). Sua associação com distinções de classe produziu o arremedo culchah* [*É como soa a palavra culture quando pronunciada por pessoas de alto nível sociocultural (N. T.)]. Havia também uma área de hostilidade associada ao sentimento antialemão, durante e após a Primeira Guerra, em relação à propaganda sobre Kultur. A área central de hostilidade persistiu, e um de seus elementos foi enfatizado pela recente expressão norte-americana culture-vulture [cultura-abutre]. É significativo que praticamente toda a hostilidade (com a única exceção da temporária associação antialemã) tenha sido vinculada aos usos que envolviam afirmações de conhecimento superior (cf. o substantivo INTELECTUAL), refinamento (culchah) e distinções entre arte “alta” (cultura) e arte e entretenimento populares. Ela registra, portanto, uma história social real e uma fase muito difícil e confusa do desenvolvimento social e cultural. É interessante que o uso social e antropológico em constante expansão de cultura e cultural e de formações como subcultura (a cultura de um grupo discernível menor) tenha ou eludido ou diminuído a hostilidade e o mal-estar e embaraço que lhe são associados, exceto em certas áreas (notadamente no entretenimento popular). O uso recente de culturalismo para indicar um contraste metodológico com estruturalismo na análise social mantém muitas das dificuldades anteriores e nem sempre evita a hostilidade.



WILLIANS, Raymond. Cultura. In: ________. Palavras-Chave: Um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. Prefácio de Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Editorial Boitempo, 2007, 117-124.