Modinha
é um gênero musical que está nas raízes da musicalidade do Brasil e de
Portugal. Esse gênero é proveniente das populações rurais portuguesas que
migraram tanto para os grandes centros urbanos de Portugal quanto para as
diversas colônias do Império Português, levando suas tradicionais canções, a
que chamaram “modas”. A moda portuguesa encontra na colônia da América um lugar
propício para se desenvolver e aos poucos se hibridiza com o lundu, música
praticada pelos negros da colônia, originando a partir daí a “modinha
brasileira”, caracterizando um gênero próprio, que quando levado a Portugal,
encantou a corte e a sociedade portuguesa setecentista.
Entre
os possíveis meios pelos quais a modinha brasileira chegou a Portugal, podemos
acreditar que foi através daqueles que vieram para a colônia da América, por
volta de finais do século XVII e inícios do XVIII, em busca do ouro recém
descoberto na região mineradora e que depois retornaram para a metrópole. Outra
hipótese é a de que o introdutor do gênero na metrópole tenha sido o brasileiro
Antônio José da Silva, o Judeu, que utilizava modinhas em suas óperas, mas essa
versão é contestada por Mozart de Araújo (1964). Um consenso entre a maioria
dos historiadores e estudiosos é a ideia de que foi o mulato brasileiro
Domingos Caldas Barbosa o responsável pela introdução da modinha brasileira em
Portugal, pois, após passar sua juventude em contato com modinhas e lundus no
Rio de Janeiro, onde exercia seu ofício de improvisador, chega na metrópole (c.
1963), levando também os gêneros praticados na colônia, bem como a moleza e
languidez americanas, com as quais encantou a nobreza e sociedade portuguesa.
Em sua Viola de Lereno, Caldas
Barbosa deixa claro que praticava o gênero na metrópole:
Ora a Deos, Senhora Ulina;
Diga-me, como passou;
Conte-me, teve saudades;
Não, não;
Nem de mim mais se lembrou;
O amor antigo
Já lhe passou;
E a fé jurada?
Tudo gorou.
Diga, passou bem no campo?
Divertio-se! passeou!
Acaso lhe fiz eu falta?
Não, não,
Era bom o seu Burrinho,
Ou sómente a pé andou?
Lembrou quem lhe dava o braço?
Não, não,
Cantou algumas Modinhas?
E que Modinhas cantou?
Lembrou-lhe alguma das minhas?
Não, não,
Ha de dizer, que eu lembrava,
E que por mim suspirou;
Não ha tal: bem a conheço:
Não, não, (BARBOSA, 1798: 15-13[1]).
É
certo também que Caldas Barbosa entoava suas modinhas sempre acompanhado de sua
viola, como evidencia um poema de seu coetâneo, e também algoz, Bocage, no qual
descreve as famosas Quartas-Feiras de Lereno, agremiação poética da Nova
Arcádia presidida por Caldas Barbosa, cujo epíteto árcade era Lereno
Selinuntino:
Preside o neto da rainha Ginga
A corja vil, aduladora, insana;
Traz sujo moço amostras de chanfana,
Em copos desiguais se esgota a pinga.
Vem pão, manteiga e chá, tudo à catinga;
Masca farinha a turba americana;
E o orang-utang a corda a banza abana,
Com gestos e visagens de mandinga.
Um bando de comparsas logo acode
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode;
Aplaudem de contínuo as frioleiras
Belmiro em Ditirambo, o ex-frade em Ode,
Eis aqui do Lereno as quartas-feiras (BOCAGE apud CASCUDO, 1958: 19).
Observando
o verso “E o orangotango a corda a banza abana” e se levarmos em conta que
“banza” (ou “mbanza”) era o nome de um instrumento de cordas africano, notamos
que Bocage se refere a “abanar”, “balançar”, “tanger” as cordas da viola, da
qual fica claro que Caldas Barbosa se acompanhava.
De
acordo com Teófilo Braga (1901), a modinha teria herdado a forma poética da
serranilha, que se conservou nas obras de Sá de Miranda, Gil Vicente e Luís de
Camões, e elementos musicais do soláo, canto lírico melancólico, triste e
mavioso, de tradição oral, próximo da xácara (de influência arábica). Essas
mesmas formas poéticas e musicais transitaram entre os palácios e a lírica
popular dos jograis e menestréis, influenciando-se mutuamente. Rodney Gallop já
alertava sobre o fato de a poesia luso-galaica se dividir em duas classes:
“imitações do provençal, e poemas que foram buscar inspiração às canções bailadas
do povo” (GALLOP, 1937: 14).
As
modinhas faziam as delícias dos serões das famílias portuguesas setecentistas
mais ilustres e também eram o deleite das açafatas do palácio e dos viajantes
que por ali passavam, mas também foi praticada por religiosos, populares e até
mandriões. Sobre isto, Manuel Morais nos esclarece que: “A prática da modinha,
[...] percorre todos os grupos sociais, desde a nobreza, a burguesia e o clero (tanto
monástico como secular) chegando o seu uso à criadagem e aos assalariados
urbanos. [...] Ela foi usada, abusada e adulterada, por todas as classes
sociais portuguesas, descendo até às mais baixas por mimetismo” (BARBOSA;
MORAIS, 2009: 82-84).
Após
ter grande sucesso na corte e sociedade portuguesa na segunda metade do século
XVIII, a modinha, agora europeia e influenciada pela ópera italiana
(contrastando com a remanescente da colônia), acompanha a família real que
migrara para o Brasil com seu séquito em virtude das invasões francesas. A
modinha começa a ser repatriada pelas elites, mas logo todos tomam gosto pela
prática do gênero e a modinha vai aos poucos deixando os candelabros dos salões
para ser entoada pelos seresteiros e boêmios nas noites enluaradas, sem deixar
de ser praticada nos pianos das moças das famílias mais abastadas, que viam nas
“doces e suaves modinhas”, como as descreveu Cernicchiaro (1926), seus ideais
de romantismo e perfeição feminina.
Ferdinand
Denis, em seu Résumè de l’histoire
littéraire du Portugal, suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil,
chega a contrastar a modinha, notadamente popular, com a obra de Rossini:
A música [no Brasil] é cultivada por todos
os estratos, ou melhor, ela faz parte da existência do povo, que dá encanto aos
seus tempos livres cantando e que se esquece mesmo dos cuidados de um trabalho
penoso todas às vezes que ouve os simples acordes de uma viola ou de um
bandolim. Enquanto a música de Rossini é admirada nos salões, porque é cantada
com uma expressão que nem sempre se encontra na Europa, os simples artesãos
percorrem as ruas até a noite repetindo estas encantadoras modinhas, que é impossível de ouvir sem ser vivamente comovido;
quase sempre servem para pintar os devaneios do amor, as suas penas ou a sua
esperança; as palavras são simples, os acordes repetitivos de uma maneira
bastante monótona; mas há, por vezes, um encanto em sua melodia, e por vezes
uma tamanha originalidade, que o europeu recém chegado não pode cansar-se de as
ouvir, e compreende a indolência melancólica desses bons cidadãos que ouvem
durante horas seguidas as mesmas canções (DENIS, 1826: 581-582, tradução nossa,
grifo do autor).
Todavia,
se a modinha, recém-chegada da Europa, encontra reduto, inicialmente, junto a
família real no Rio de Janeiro, nova capital do Império, logo vai se espalhar
por várias outras regiões sendo praticada desde o Sul, Santa Catarina, até o Norte,
Rio Grande do Norte, passando por Goiás, Minas Gerais, São Paulo, entre outros.
Em
referência às suas características, a modinha é geralmente monótona, plangente,
melancólica e até funesta. Um grande exemplo de sua melancolia é a poesia da
modinha Desde o dia em que eu nasci,
de Joaquim Manoel da Câmara:
“Desde o dia em que eu nasci
Naquele funesto dia
Veio bafejar-me o berço
A cruel melancolia.
Fui crescendo e nunca pude
Ver a face de alegria
Foi sempre a minha herança
A cruel melancolia.
Protestou seguir meus passos
Té levar-me à campa fria
Macerou minha existência
A cruel melancolia.” (CÂMARA, [c.1817-1819]
2017, pp. 01-02).
A
modinha ainda resiste na poética e musicalidade luso americana, devido ao
romantismo, lirismo, melancolia, etc., que ainda hoje são incluídos nas
canções, mas sem dúvidas, não existe mais enquanto gênero, propriamente dito, ou
de forma rarefeita, ou ao menos não o mesmo que existiu entre os séculos XVIII
e XX, ou seja, aquele que, ainda que com grandes variações, permaneceu durante
cerca de dois séculos.
[1] As grafias das citações
aqui incluídas serão mantidas no original, ou o mais próximo possível do
original
Este texto é parte do artigo "Modinha: Um estudo
etimológico sobre o termo", publicado na Revista
Intellèctus, ano XVII, n. 1, 2018. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intellectus/article/view/25291/25711