A modinha está nas mais profundas raízes da música
brasileira, responsável pelo lirismo romântico de nossas canções e pela
docilidade, suavidade e amorosidade que encontramos em nossa música. Sempre,
entretanto, a modinha transitou entre o erudito e o popular, ora tendendo para
este, ora para aquele lado, e, em outros momentos, unindo esses dois polos em
uma mesma canção.
A modinha nasce popular, em Portugal, originada no meio
rural, inicialmente configurando a chamada moda portuguesa e logo chegando aos
meios urbanos junto com aqueles que migravam do campo para as cidades, durante
o século XVII. Segundo Rui Vieira Nery, “Na maioria dos países o acréscimo de
população das cidades provinha em boa parte de um afluxo crescente de sectores
do campesinato, e os novos citadinos mantinham ainda alguns traços culturais
característicos dessa sua origem rural.”[1]. Desta forma, nos meios citadinos,
a moda portuguesa dá seus primeiros passos à erudição, assumindo formas das
canções literárias, da canzone italiana e das suítes, fugas e sonatas dos
músicos alemães. Entretanto, nos alerta Rodney Gallop que “É certamente difícil
dizer até que ponto as canções regionais e urbanas se entre-influenciaram, mas
não há dúvida que tal intercâmbio existiu, existe [...]”[2].
A moda
portuguesa também seria levada para a colônia portuguesa da América, integrada
ao processo migratório que levou um enorme contingente para o Brasil em busca
do ouro e pedras preciosas da região mineradora, já em inícios do século XVIII.
Neste contexto a moda portuguesa assume feições totalmente populares, e
profanas. O jesuíta Nuno Marques Pereira, em seu Compendio Narrativo do
Peregrino da America, com primeira edição de 1728, nos fala de músicas que ouviu
na Bahia, tão alarmantes a ponto de ele exortar: “E que vos direy de ouvir
musicas profanas? [...] que em nenhuma parte deviaõ ser ellas mais bem
evitadas, e castigadas com duplicadas penas, que neste Estado do Brasil; pelo
profano das modas, e mal soante dos conceitos.”[3]. A Bahia foi de fato o
reduto inicial da moda portuguesa e possivelmente onde esta ganhou o diminutivo
“modinha”, como nos sugere Vincenzo Cernicchiaro: “La ‘Modinha’ fioriva nella
classica Bahia, ove, del resto, nacque e crebbe. [A ‘Modinha’ floresceu na
clássica Bahia, onde, aliás, nasceu e foi criada.]”[4].
A moda
portuguesa também se espalhou para outras localidades como Rio de Janeiro e São
Paulo, sempre atrelada as camadas mais populares, junto as quais terminou incorporando
o lundu, praticado pelos negros da colônia, que seria responsável pela
languidez que transformou a moda portuguesa em modinha brasileira. E foi assim,
popular e lasciva que, a agora, modinha brasileira, foi para Portugal, onde
conquistaria a corte e a sociedade portuguesa setecentista.
A modinha
brasileira chega a Portugal através de Domingos Caldas Barbosa, mulato filho de
pai português e mãe angolana que conheceu tanto a modinha quanto o lundu
durante a sua juventude, passada no Rio de Janeiro, onde também desenvolveu
seus dotes de improvisador[5], sempre às voltas com “invenctivas de mao gosto”
[6], que o levaram inclusive ao desterro para a Colônia do Sacramento, onde
lutou na defesa daquele território. Caldas Barbosa indo para Portugal, estudar
leis e cânones na Universidade de Coimbra, levou consigo a modinha brasileira,
que apresentou e difundiu durante os reinados de D. José I e D. Maria I,
fazendo-a apreciada pela corte e causando o deleite das açafatas do palácio.
É por esse período que a modinha brasileira chega ao auge de
sua erudição, quando incorpora a ópera italiana, que lhe atribuiria formas de
uma verdadeira ária de corte, e na qual perderia, quase ou totalmente, suas
características próprias. Talvez, por este último aspecto, essa fusão não
tivesse agradado a todos. O viajante inglês William Kinsey, que também nos
chama a atenção para o fato de a modinha ser considerada uma música nacional
portuguesa, chega a sugerir que “It would be well if the Portuguese confined
themselves to their native harmony, instead of attempting the Italian style
[Seria bom se os portugueses se confinassem a sua harmonia nativa, ao invés de
tentar o estilo italiano]”[7]. E o português César das Neves foi ainda mais
longe, afirmando que “[...] muitas modinhas tiveram grande voga pela sua
originalidade; mas a maior parte não passavam de desastradas imitações das
arias de Mozart, Beethoven, Cimarosa, etc., pretenciosamente sobrecarregadas de
volatas, grupetos, trillos, e todos os artifícios de agilidade vocal, que
tornava ridícula esta musica.”[8]. Todavia, acredita-se que a modinha é em
grande parte responsável pelo surgimento de uma ópera portuguesa e os
compositores de modinhas em Portugal eram todos de grande erudição, ou de ópera
ou sacros.
Mas o sucesso da modinha era tanto, que entre 1792 e 1796 o
gênero ganhou até mesmo um jornal especializado, o Jornal de Modinhas, com o
qual contribuíram também músicos estrangeiros, franceses, italianos e ingleses,
levando a modinha a ter edições também no estrangeiro, especialmente francesas.
O sucesso da modinha, no entanto, não se restringiu as
camadas altas portuguesas. De acordo com Manuel Morais: “A prática da modinha,
[...] percorre todos os grupos sociais, desde a nobreza, a burguesia e o clero
(tanto monástico como secular) chegando o seu uso à criadagem e aos
assalariados urbanos. [...] Ela foi usada, abusada e adulterada, por todas as
classes sociais portuguesas, descendo até às mais baixas por mimetismo.”[9].
Talvez esse uso e abuso da modinha, levou-a a um gradativo
desinteresse em Portugal, justamente no período em que a família real e a corte
portuguesa se transferem para o Brasil, levando junto em suas embarcações a,
agora erudita, modinha.
De volta ao Brasil, a modinha é inicialmente apreciada pelas
elites, mas aos poucos vai ganhando o gosto de todos, terminando por se
popularizar cada vez mais, como nos mostra Mozart de Araújo: “A modinha, ária
de côrte, deixava aos poucos a luz dos candelabros, para se expandir sob o céu
das noites enluaradas. E desprezava o contraponto do cravo, pelo contracanto
dos baixos melódicos dos violões seresteiros.”[10].
Ferdinand
Denis, escritor e historiador francês, que esteve no Brasil em finais da
primeira década do século XIX, chega a atribuir um cariz unicamente popular as
modinhas do Brasil, contrastando-as inclusive com a erudição da obra de
Rossini, muito apreciada nesse período. Segundo ele:
“La musique [dans le
Brésil] est cultiveé dans tous les états, ou plutôt elle fait partie de l’existence
chez le peuple, qui charme ses loisirs en chantant, et qui oublie même les
soins d’un pénible travail toutes le fois qu’il entend les simples accords
d’une guitare ou d’une mandoline. Tandis que la musique de Rossini est admirée
dans les salons, parce qu’elle est chantée avec une expression qu’on ne
rencontre pas toujours en Europe, les simples artisans parcourent les rues vers
le soir en répétant ces touchantes modinhas, qu’il est impossible d’écouter
sans en être vivement ému; presque toujours elles servent à peindre les
rêveries de l’amour, ses chagrins ou son espoir; les paroles sont simples, les
accords répétés d’une manière assez monotone; mais il y a quelquefois tant de
charme dans leur melodie, et quelquefois aussi tant d’originalité, que l’Européen
nouvellement arrivé ne peut se lasser de les écouter, et cançoit l’indolence
mélancolique de ces bons citadins qui écoutent pendant des heures entières les
mêmes airs. [A música [no Brasil] é cultivada por todos os estratos, ou melhor,
ela faz parte da existência do povo, que dá encanto aos seus tempos livres
cantando e que se esquece mesmo dos cuidados de um trabalho penoso todas as
vezes que ouve os simples acordes de uma viola ou de um bandolim. Enquanto a
música de Rossini é admirada nos salões, porque é cantada com uma expressão que
nem sempre se encontra na Europa, os simples artesãos percorrem as ruas até a
noite repetindo estas encantadoras modinhas, que é impossível de ouvir sem ser
vivamente comovido; quase sempre servem para pintar os devaneios do amor, as
suas penas ou a sua esperança; as palavras são simples, os acordes repetitivos
de uma maneira bastante monótona; mas há, por vezes, um encanto em sua melodia,
e por vezes uma tamanha originalidade, que o europeu recém chegado não pode
cansar-se de as ouvir, e compreende a indolência melancólica desses bons
cidadãos que ouvem durante horas seguidas as mesmas canções.]”[11].
Todavia, a
modinha brasileira é incorporada tanto por músicos populares quanto por músicos
eruditos, nacionais e estrangeiros. Joaquim Manoel da Câmara, nem sequer sabia
ler partitura, mas teve suas modinhas encontradas na Biblioteca Nacional de
Paris, para onde foram levadas por Sigismund Neukomm[12], discípulo de Michel e
Joseph Haydn, que chegou a dar aulas de piano para D. Pedro I, outro grande
apreciador de modinhas.
No início
do século XX a modinha se populariza ainda mais, auxiliada pelo advento dos
fonogramas que levaram os discos ao interior dos lares e com eles as modinhas e
os cantores e compositores deste gênero. Foram ainda, muitas as publicações que
incluíram ou mesmo que levavam a modinha no nome. Outras, no entanto, embora
tivessem o nome “modinha” no título, não apresentavam sequer uma canção do
gênero. A modinha, que chegou a se confundir com o lundu e com a ópera, vai
agora se diluindo na rítmica da valsa e aos poucos foi se dirimindo totalmente,
depois de cerca de dois séculos de existência.
[1] NERY, Rui V.; MORAIS, Manuel. Modinhas, Lunduns e
Cançonetas. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000, p. 10.
[2] GALLOP, Rodney. Cantares do Povo Português. Lisboa:
Instituto de Alta Cultura, 1937, p. 17.
[3] PEREIRA, Nuno Marques. Compendio Narrativo do Peregrino
da America. Lisboa: Officina de Manoel Fernandes da Costa, 1728, pp. 227-228.
[4] CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia dela musica nell brasile:
Dai tempi coliniali sino ao nostri giorni (1549-1925). Milano: Stab. Tip. Edit.
Fratelli Riccioni, 1926, p. 55.
[5] TINHORÃO, José R.. Domingos Caldas Barbosa: O poeta da
viola, da modinha e do lundu. São Paulo: Editora 34, 2004.
[6] VARNHAGEN, Francisco A. de. Domingos Caldas Barboza.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – RIHGB, Tomo XIV, 1851,
pp. 449-460, p. 449.
[7] KINSEY,
William. Portugal Illustrated: In a series of letters. London: Treuttel,
Würtz, and Richter, Soho Square, 1828, p. 68.
[8] NEVES, Cesar das; CAMPOS, Gualdino de. Cancioneiro de
musicas populares. vol. II. Porto: Typ. Occidental, 1893, p. XV.
[9] BARBOSA, Domingos Caldas; MORAIS, Manuel. Muzica
Escolhida da Viola de Lereno (1799). Estudo introdutório e revisão de Manuel
Morais. Lisboa: Estar, 2003, pp. 82-84.
[10] ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundu no século XVIII:
Uma pesquisa histórica e bibliográfica. São Paulo: Ricordi, 1963, p. 12.
[11] DENIS, Ferdinand. Résumè de l’histoire littéraire du
Portugal, suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil. Paris: Lecointe
& Durey, 1826, pp. 581-582.
[12] ARAÚJO, Mozart. Sigismund Neukomm: Um músico austríaco
no Brasil. Revista Brasileira de Cultura, ano 1, nº 1, jul./set. 1969.