domingo, 20 de novembro de 2016

O Lundu



O lundu provém da música praticada pelos negros africanos da região do Congo e Angola, trazidos para o Brasil como escravos a partir do século XVI. Caracterizado tanto como dança quanto como gênero musical, o lundu foi muito praticado no Brasil Colônia, sendo o primeiro gênero musical de matriz africana plenamente aceito pela sociedade branca colonial e terminou por constituir a base da musicalidade brasileira.
O viajante português Alfredo de Morais Sarmento, que visitou a África no século XIX, descreveu uma dança de nome “batuque”, que encontrou no Congo e classificou como “essencialmente lasciva”, capaz de reproduzir os “instinctos brutaes” daqueles povos. Ainda segundo Sarmento: “Em Loanda [...], o batuque consiste tambem n’um circulo formado pelos dançadores, indo para o meio um preto ou preta que depois de executar vários passos, vai dar uma embigada, a que chamam semba, na pessoa que escolhe, a qual vai para o meio do circulo, substituil-o. (SARMENTO, 1880, p. 127).
A descrição de Sarmento coincide com o retrato que o poeta Tomás Antônio Gonzag faz, no Brasil, do lundu e do batuque, ainda em finais do século XVIII, também descrevendo a “umbigada”:
 “Aqui lascivo amante sem rebuço
À torpe concubina oferta o braço:
Ali mancebo ousado assiste e faia
À simples filha, que seus pais recatam.
A ligeira mulata, em trajes de homens,
Dança o quente lundu e o vil batuque;

[...]

Umas vezes suspende ao ar o corpo;
Outras vezes carrega sobre a tábua,
E desta sorte faz que as belas moças,
Movidas do balanço, deem no vento
Milhares e milhares de embigadas.” (GONZAGA, 2013,  pp. 103-104).

É certo que o lundu se originou do batuque trazido pelos negros da África, mas vale lembrar que, ao menos no Brasil, “batuque” era um nome genérico com o qual se designava qualquer música ou dança dos negros. Outro termo genérico no período colonial era “calundu”, servindo para se referir às práticas religiosas dos negros. O nome “lundu” é possivelmente uma corruptela de “calundu”.
A palavra “lundu” aparece pela primeira vez em uma carta de D. José da Cunha Grã Athayde e Mello, que foi governador de Pernambuco entre 1768 e 1769, defendendo certo tipo de baile praticado pelos negros da colônia. A carta, de 1780, foi transcrita por Francisco Augusto Pereira da Costa no artigo Folk-Lore Pernambucano, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1907, nela Athayde e Mello diz:
“Os pretos divididos em nações e com instrumentos proprios de cada uma, dançam e fazem voltas como arlequins, e outros dançam com diversos movimentos do corpo, que, ainda que não sejam os mais indecentes, são como os fandangos em Castella, o fôfas de Portugal, o lundum dos brancos e pardos daquelle paiz:” (ATHAYDE E MELLO apud PEREIRA DA COSTA, 1907, p. 204).
O lundu teria então incorporado os estalidos de dedo que se acredita ter vindo do fandango dos espanhóis. Do batuque o lundu assimilou o gesto característico da umbigada (já praticado na África), o qual, além de indicar o dançarino que vai substituir aquele que está no centro do círculo, também representa o clímax da dança permeada de sensualidade e languidez. A música do lundu termina por acompanhar a dança. Monótono e repetitivo, mas voluptuoso e lascivo, o lundu encontrou na distante colônia portuguesa da América ambiente favorável para se desenvolver, apesar das perseguições sofridas pelos negros quanto às suas práticas culturais.
Percebemos no entanto, como Athayde e Mello nos demonstra, que se o lundu é uma música e uma dança originalmente praticada pelos negros, aos poucos inclui também mestiços e brancos. Nas imagens abaixo percebemos claramente esta aculturação. A primeira mostra um batuque praticado por negros, tal como chega ao Brasil trazido pelos negros escravos, ainda que esses negros já estivessem aparentemente adaptados ao solo brasileiro, com uma casa-grande ao fundo. As duas seguintes mostram a “dança do lundu”, todavia enquanto uma mostra apenas negros, com uma casa simples ao fundo e sem maiores recursos instrumentais, a outra mostra um grupo maior e etnicamente diversificado, com um casal de brancos ao centro, dançando ao som de uma viola (instrumento orginalmente de brancos), e a presença de pessoas aparentemente abastadas e até de um religioso, com uma casa ampla, vistosa e avarandada ao fundo e uma, entre os poucos negros, cuida de alimentar a fogueira, demonstrando sua baixa condição[1].



A dança do batuque (Danse Batuca). Fonte: RUGENDAS, 1835, p. 277.





A dança do lundu (Danse Landu). Fonte: RUGENDAS, 1835, p. 278.





A dança do lundu (Danse Landu). Fonte: RUGENDAS, 1835, p. 217.



Entre os indígenas, os viajantes Carl von Martius e Johann Spix, descrevem uma dança dos Puris em que:
“As mulheres remexíam os quadrís fortemente, ora para frente, ora para trás, e os homens davam umbigadas; incitados pela música, pulavam fora da fila, para saudar, dêsse modo, aos assistentes. [...] Esta dansa, cuja pantomima parece significar os instintos sexuais, tem muita semelhança com o batuque etiópico, e talvez passado dos negros para os indígenas americanos.” (MARTIUS; SPIX, 1938, p. 345).
Percebemos então que o lundu, e a umbigada, chega a todas as etnias presentes no período colonial e também a variados estratos da sociedade. Aos poucos o lundu dos terreiros, já com as devidas modificações, também vai ser dançado nos salões da nobreza “com a umbigada característica do batuque disfarçada em mesura”, como nos informa Mozart de Araújo (1964, p. 23), sendo apreciado também pela aristocracia. Isso não só no Brasil, mas também em Portugal, onde o lundu chamava a atenção pela “exoticidade” e para onde foi levado possivelmente durante o século XVIII pelo poeta mulato Domingos Caldas Barbosa ou pelos aventureiros que vieram ao Brasil em busca de ouro. Lá, passou a dividir espaço com a modinha, com quem já havia se hibridado antes na colônia.
O lundu, enquanto gênero musical também foi assimilado pelos autores de teatro, integrando entremezes e revistas, nos quais sua sensualidade era aproveitada para cenas cômico-jocosas. Com o desaparecimento do lundu, o maxixe seria aproveitado para o mesmo fim, abrindo depois espaço para o samba.
Também foram muitos os lundus gravados, a partir do advento dos fonogramas, que mantinham letras cômicas ou de duplo sentido. Vale destacar que a primeira canção gravada no Brasil foi o lundu Isto é Bom, de Xisto Bahia, gravado por Bahiano, pela Casa Edison, em 1902.
Segundo Dilmar Miranda:
“O lundu, como registro da rítmica sincopada binária simples, constitui valioso exemplar de como a polirritmia originária afro ainda presente na música popular contemporânea de povos afro-latinos, se perdeu no tempo, no trajeto da constituição de um gênero de afro-brasileira. É impossível saber como e em que exato momento isso se deu. Atualmente, a polirritmia continua sendo praticada nos cultos do candomblé ou em alguma das danças dramáticas tradicionais como o bumba-meu-boi, espécie de nichos da tradição e preservação da rítmica original.” (MIRANDA, 2009, p. 35).
Temos ainda, no Pará, a representação do lundu marajoara, da Ilha de Marajó, extremamente lascivo, se assemelhando ao semba angolano, notadamente, ambos de mesma origem remota.

Conclusão.

Percebemos que a cultura e musicalidade dos negros, especialmente do lundu, é amplamente assimilada pelos habitantes da colônia, integrado pelas diferentes etnias e camadas sociais desse período. Devemos destacar, entretanto, que, apesar da condição de servidão, havia uma certa tolerância a certas práticas culturais dos negros. O jesuíta André João Antonil, em sua obra Cultura e Opulência do Brasil, publicado em 1711, já aconselhava os senhores a permitir que os negros se alegrassem e praticassem sua cultura, afirmando que:
“Negarlhes totalmente os seus folguedos, que saõ o unico alivio do seu cativeiro, he querellos desconsolados,& melancolicos, de pouca vida,& saude. Por tanto naõ lhes estranhem os Senhores o crearem seus Reys, cantar,& bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do anno,& o alegraremse innocentemente á tarde depois de terem feito pela manhã a suas festas de Nossa Senhora do Rosario, de São Benedito,& do Orago da Capella do Engenho, sem gasto dos Escravos, acudindo o Senhor com sua liberalidade aos Juízes, & dandolhes algum premio do seu continuado trabalho.” (ANTONIL, 1711, p. 28).
Essa certa “liberalidade” (que não excede as muitas perseguições e proibições às manifestações culturais dos escravos), dinamizou a interculturalidade entre os negros e os outros habitantes da colônia, interação essa que sem dúvida é responsável pela integração e permanência de elementos da cultura negra no Brasil atual, embora também tenha havido perdas.
São reconhecidas as diferenças que se estabeleceram entre reinóis e colonos no Brasil, a colônia da América atribuiu certas características (”amolecimento”) aos colonos que se devem em muito à distância e ao clima tropical brasileiro. Sem ter como recorrer à metrópole, os colonos terminavam assimilando as culturas índia e negra. No que concerne ao clima, apesar de os portugueses terem boa aclimatabilidade, como já apontou Gilberto Freyre (2003, p. 72), os negros tinham certa vantagem, por já estarem acostumados aos trópicos africanos, o que resultou no fato de suas práticas culturais serem realizadas de forma semelhante como a que se fazia na África, obviamente adaptadas aos recursos que agora dispunham. Essa melhor adaptação aos climas quentes por parte dos negros (vide colonização de Angola), serve também de recurso para a estruturação dos colonos, que sem dúvidas tomam a adaptação dos negros à terra como modelo.
Todas essas características foram reforçadas a partir do século XIX, quando em meio ao processo de Independência, se procurava no período colonial (incluindo-se ai a cultura dos negros) elementos para se construir uma identidade nacional autenticamente brasileira. De fato, os negros são responsáveis por muitas características atribuídas ao povo brasileiro, a calorosidade, a alegria exacerbada, o gosto musical predominante, o paladar, o charme e a reconhecida sensualidade, são inegavelmente traços da cultura negra no Brasil. Inegavelmente o lundu também está nas origens do processo de globalização da música brasileira, pois, como vimos, antecede diretamente o samba, na linha formadora deste gênero, e o samba, além de tornar-se símbolo nacional, foi sistematicamente exportado e internacionalizado, já a partir dos anos 1930.
Etnomusicologicamente falando, a música tem papel preponderante na aculturação da cultura de matriz africana no Brasil, pois é uma manifestação primitiva e natural dos negros, presente em seus festejos, lutas e práticas religiosas, veículos pelos quais ocorrem as interações culturais entre os negros e com os demais povos. O lundu tem ainda maior destaque, pois, como vimos, foi a primeira manifestação dos negros aceita e assimilada socialmente pelos brancos. Através da dança e da música do lundu, a sociedade brasileira incorporou traços da cultura dos negros. O lundu esteve presente tanto nos terreiros a céu aberto, quanto nos salões aristocráticos e também nos teatros e lares, entre boêmios e músicos eruditos, fazendo o intercâmbio cultural para a consolidação da cultura negra no Brasil.



Referências bibliográficas.

ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Lisboa: Na Officina Real Deslandesiana, 1711.
ARAÚJO, Mozart de. A modinha e o lundu no século XVIII: Uma pesquisa histórica e bibliográfica. São Paulo: Ricordi, 1963.
CASTAGNA, Paulo. A modinha e o lundu nos séculos XVIII e XIX. Apostila do curso História da Música Brasileira, Instituto de Artes da UNESP. São Paulo: [S/I], 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: A formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48ª edição rev.. São Paulo: Global, 2003.
GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas. [edição eletrônica]. São Paulo: DCL, 2013.
LISBOA, Segréis de. Modinhas e Lunduns dos séculos XVIII e XIX. Movieplay, 1997.
Mário de Andrade – Missão de Pesquisas Folclóricas. Disponível em: <http://ww2.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/> Acesso em: 23 abr. 2015.
MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von; SPIX, Johann Baptiste. Viagem pelo Brasil. vol. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938. Tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer.
MIRANDA, Dilmar. Nós a música popular brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2009.
NOGUEIRA, Antônio Gilberto Ramos. Inventário e patrimônio cultural no Brasil. História, São Paulo, vol. 26, nº 02, pp. 257-268, 2007.
PINTO, Tiago de Oliveira. Etnomusicologia: 100 anos: 100 anos de Etnomusicologia – E a ‘era fonográfica’ da disciplina no Brasil. In: LÜHNING, Angela E. (org.). Anais do II Encontro da Associação Brasileira de Etnomusicologia. Salvador: UFBA, 2005.
Plataforma Lattes. Disponível em: < http://lattes.cnpq.br/> Acesso em: 23 abr. 2015.
RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann & C., 1835.
SANDRONI, Carlos. Apontamentos sobre a história e o perfil institucional da etnomusicologia no Brasil. Revista USP, São Paulo, nº 77, mar./mai. pp. 66-75, 2008.
SARMENTO, Alfredo de. Sertões D’Africa (Apontamentos de Viagem). Lisboa: Francisco Arthur da Silva, 1880.
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular de Índios, Negros e Mestiços. Petrópolis: Vozes, 1972.
TRAVASSOS, Elizabeth. John Blacking ou uma humanidade sonora saudavelmente organizada. Cadernos de Campo, São Paulo, nº 16, pp. 191-200, 2007.




[1] Ver também: CASTAGNA, Paulo. A modinha e o lundu nos séculos XVIII e XIX. Apostila do curso História da Música Brasileira, Instituto de Artes da UNESP. São Paulo: [S/I], 2003.






Este texto é parte do artigo "Lundu: Um Olhar Etnomusicológico" apresentado no V Congresso Internacional do Núcleo de Estudos das Américas - NUCLEAS, UERJ, 17-21 out. 2016.

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