terça-feira, 12 de julho de 2022

Festivais da canção e globalidade

 



Festivais da canção e globalidade: Alguns debates.

 

            Quando falamos em “festivais da canção”, nomeadamente, estamos nos referindo aos festivais de caráter competitivo e de âmbito televisivo, ou seja, os festivais de música onde concorrem diferentes canções, muitas vezes de diferentes países e que são gravados, produzidos e/ou realizados por emissoras de TV e transmitidos via televisão. Mais propriamente falamos de festivais de música popular, uma música que encontra nos mass media o seu meio de difusão e, talvez mais do que isso, encontra neles a origem e razão de ser, na medida que sua criação representa os interesses comerciais vinculados aos meios de comunicação e visa atingir as massas, como preconiza Theodor Adorno (1986) ao conceituar a “popular music”.

            Esse tipo de canção produzida nos festivais, que intenciona apenas agradar o público no intuito de vencer os certames, ganha, no Brasil, o nome de “música de festival”, se assemelhando às “canções carnavalescas”, ou seja, canções feitas apenas para um evento, ou para uma determinada época do ano, perdendo depois a sua validade, como bem evidencia Chico Buarque, em entrevista encontrada no filme Uma Noite em 67 (que retrata o Festival da TV Record de 1967)[i]. Em um quadro mais amplo podemos destacar também as canções samremenses e eurovisivas. Quanto a este último tipo, já bastante estudado (RAYKOFF; TOBIN, 2007, p. xix), um outro filme, Eurovision Song Contest: The Story of Fire Saga [Festival Eurovisão da Canção: A História do Fire Saga] (2020)[ii], demonstra cômica e ironicamente o superficialismo, o comercialismo e o jogo de interesses que precede as canções dos festivais, em especial aqui, do Festival Eurovisão da Canção, hoje um dos espetáculos com maior audiência no planeta e um dos mais longevos. De forma alguma isso faz com que o festival perca a sua importância. Segundo Nuno Galopim, “o Festival da Eurovisão ajuda-nos a contar a história politica do Velho Continente” e não só isso, “tal como acontece com a história política, também a evolução das grandes mudanças na sociedade e nos comportamentos está refletida num concurso que, naturalmente, acaba igualmente por espelhar os ventos que foram alterando as tendências do gosto da música popular.” (GALOPIM, 2018, p. 16).






Os festivais da canção se defrontam com tudo aquilo que pertence ao campo musical – interpretação, composição, instrumentação, performance, letras, ritmos, gêneros musicais –, um grande problema, entretanto, que há muito se tem enfrentado, é a internacionalização, ou universalização, musical. Trata-se de uma propagação de gêneros e ritmos, via de regra, difundidos a partir de países desenvolvidos, que se apresentam como dominantes no plano cultural e tendem, como assinalamos antes, a uma suplantação das especificidades regionais. O que se configura é uma relação entre “dominantes” e “dominados”, uma subalternização em que culturas dominantes se favorecem de processos de internacionalização que, em geral, vem acompanhados de questões econômicas e empresariais, uniformizando a cultura de acordo com o seu modelo e estabelecendo padrões, que eliminam as diferenças e as especificidades locais.

De forma alguma, no entanto, falar em internacionalismo seria falar exclusivamente nessas relações predatórias que implicam no domínio de uma cultura sobre outra ou na subalternização cultural. Raymond Williams, por exemplo, nos fala da antítese que se forma entre nacionalismo, como “busca egoísta dos interesses de uma nação contra os de outras”, e internacionalismo, entendido como “cooperação entre as nações” (WILLIAMS, 2007, pp. 286-287). Esse encontro e cooperação entre as nações, embora se relacione com o processo de globalização, poderia desencadear um outro processo, a “mundialização” (ORTIZ, 2003), um patamar final nas inter-relações globais, que consistiria numa integração última entre as nações (pax mundi) (MONTEIRO, 2016), cabendo ai compartilhar dos mesmos elementos ou manter suas identidades regionais e nacionais.

Uma outra via permite às culturas dominadas assimilar a cultura dominante e hibridizá-la, ressignificá-la, reordená-la, de acordo com as suas realidades locais. Este é o princípio que norteia a world music, em que, aproximando-se do conceito de “glocal”, fundem-se elementos locais e globais, em geral, representados pela cultura dominada e pela cultura dominante, respectivamente. Poderíamos falar também em um total rechaço da cultura dominante, em um afastamento e na resistência conseguida com um maior enraizamento na cultura local. E é claro que pode ocorrer uma apropriação de elementos locais por parte de uma cultura internacionalizada, atraída pela diferença, pelo exótico, elevando o resultado desta hidridação a um nível extra-nacional ou global, ou ainda, podemos destacar, uma assimilação inversa da cultura dominada por parte dos grupos dominantes, como ocorre na intelligentsia brasileira, que recorre à tradição indígena como sinônimo de pureza, consciência ambiental, etc. (SEEGER, 1997, p. 482) e que na música é comum e frequente. É bom salientar que mesmo neste caso não se atingiria a “pureza total”, pois os que se apropriam da cultura nativa não pertencem de fato a ela e estão impregnados de resíduos, recursos e instrumentos que destoam ou os afastam da fonte original.

Na década de 1980, houve tentativas de resgatar a música indígena e a língua tupi como forma de representatividade da mais pura tradição brasileira e sul-americana, em festivais da canção. Mira Ira (Nação Mel) (Lula Barbosa/ Vanderley de Castro), interpretada por Miriam Mirah, acompanhada por Lula Barbosa e pelos grupos Tarancón e Placa Luminosa, ficou com o segundo lugar no Festival dos Festivais, em 1985, resgatando uma musicalidade indígena e hibridando-a com música brasileira, latina e pop, utilizando instrumentos tradicionais indígenas (maracás, flauta pã, apito), junto com tambores, sopros, instrumentos elétricos e outros recursos, como o talkbox. A letra, intencionando o multilinguismo, inicia com o verso “Mira num olhar”, com a palavra “Mira” tendo correspondência tanto no português, quanto no espanhol e no tupi, no qual significa “gente”. A letra procura, portanto, mostrar integração entre os povos, mas a referência ao povo tupi é direta: “Mira ira/ Raça tupi/ Matas/ Florestas/ Brasil; e a última estrofe é toda na língua tupi: “Anana ira/ Mira ira Anana Tupi/ Anana ira Anana ira/ Mira ira [Nação mel/ Gente mel, nação tupi/ Nação mel, nação mel/ Gente mel]”.

O idioma também pode servir como forma de resistência e representação de uma identidade. Um dos casos mais notáveis e conhecidos foi o que ocorreu no Festival Eurovisão de 1968, em Londres, para o qual o selecionado espanhol era Joan Manuel Serrat, mas que se resignou em participar do festival se não pudesse interpretar a canção em seu idioma de origem, o catalão. O regime franquista não concedeu essa permissão e Manuel Serrat se recusou a competir, dando lugar à jovem Massiel que venceu o Festival Eurovisão daquele ano, levando o certame do ano seguinte para Madri.

Falamos no Eurovisão como um certame, logo, requer competição, e nele o idioma foi frequentemente utilizado como forma de obter vantagem em relação aos outros concorrentes. O inglês de tornou uma “língua universal” e também no Eurovisão passou a ser a melhor escolha para a conquista de votos do público-espectador, sobre o que já discutimos (MONTEIRO, 2015b). Inicialmente o francês era a língua preferida para este festival, mas, especialmente depois da vitória do ABBA, em 1974, com Waterloo, a maioria dos países começou a preferir o inglês como idioma para as suas canções, na tentativa de angariar mais votos e obter a vitória. A situação levou os organizadores a estabelecer uma regra em que os países concorrentes deveriam apresentar as canções apenas em um dos seus idiomas oficiais, mas a regra foi esquecida e o inglês passou a ser o idioma preferido “devido justamente ao interesse de conquistar um maior público e, consequentemente, mais votos”, apesar de alguns países continuarem preferindo “misturar o inglês e/ou outros idiomas à suas línguas nativas ou mesmo utilizar apenas sua língua oficial.” (MONTEIRO, 2015b, p. 133).

Curioso notarmos que o idioma também pode servir como representação identitária mesmo quando todo o resto é assimilado de outra cultura. É o caso do rock na maioria dos países em que este gênero musical de origem anglo-saxã plantou raízes. O ritmo, a instrumentação, o ethos, de uma forma geral, é todo representativo do rock, de uma cultura estrangeira, mas, geralmente, o idioma utilizado é o nacional. Assim se configura o rock brasileiro, o rock argentino, o rock português, etc., e apenas a garantia do idioma já basta para que se legitime uma identidade nacional – exceto por alguns traços musicais que, as vezes, se fundem à matriz estrangeira. No Brasil, muito semelhante caso ocorreu no cinema das décadas de 1950 e 1960, em que, nos adverte Renato Ortiz, os que defendiam um cinema autenticamente brasileiro “privilegiaram a problemática da língua, da fala nacional, como forma de se contrapor ao cinema estrangeiro, ao processo de ‘alienação cultural’ pelo qual passava o país”. “Diziam eles que, para encontrarmos nosso Ser, era necessário voltarmos para o idioma nacional, fonte inequívoca de nossa autenticidade.” (ORTIZ, 2006, pp. 168-169).

 

 

Os festivais da canção e sua propagação pelo mundo. 


Os festivais da canção surgem no pós-Segunda Guerra como sinalizadores de uma série de mudanças pela qual passou a sociedade europeia. Agregando os muitos países que foram divididos pelas acirradas disputas durante os dois conflitos mundiais, demarcando a passagem de uma mentalidade autoritária (como a dos regimes que ascenderam na primeira metade do século XX) para um pensamento moderno e liberal e transferindo ainda o domínio dos meios de comunicação do rádio para a televisão.

O primeiro festival da canção surgido nos moldes dos quais conhecemos hoje, inequivocamente, é o Festival de San Remo, que é apresentado primeiro como um programa radiofônico e só depois televisivo. A ideia foi do italiano Amilcare Rambaldi, um florista que lutou na Segunda Guerra e fez parte de uma comissão encarregada de administrar e dar nova vida ao Cassino de San Remo, depois de terminados os conflitos. Animado, já em 1945 Rambaldi fez um extenso relatório com propostas para atuações em áreas diversas, como desfile de moda, torneio de bridge, festival de cinema e até um conservatório de música, além, é claro, de um festival italiano de canções.

A proposta inicialmente não foi aceita, mas, dois anos depois, Amilcare conhece o radialista Angelo Nizza, que integrava a assessoria de imprensa do Cassino. Nizza intercede por Rambaldi junto à administração, agora privada, do Cassino de San Remo e, alguns anos depois, consegue a aprovação para que se realize, no luxuoso salão de festas do Cassino, a primeira edição do Festival della Canzone Italiana, que teve lugar nos dias 20 e 21 de janeiro de 1951.

O festival da canção italiano, como dissemos, foi primeiramente um programa de rádio, transmitido pela RAI (Radio Audizioni Itália, depois Radiotelevisione Italiana), que substituiu a EIAR (Ente Italiano Audizioni Radiofoniche), amplamente utilizada pelo fascismo na Itália. Em 1954, entretanto, uma outra grande modificação acontece, pois com o inicio das emissões televisivas no país, o Festival de San Remo passa a ser televisionado, consolidando definitivamente o formato dos festivais da canção como conhecemos hoje.

Essa fabulosa ideia unificou o país e serviu para colaborar com a reconstrução da Itália no pós-guerra, fortalecendo sua identidade nacional, promovendo o turismo na cidade litorânea de San Remo e criando um novo tipo de música – a “canção samremense” –, comercial, massificada, mas moderna e com qualidade capaz de competir com a já mundialmente difundida chanson française e com a cada vez mais crescente música norte-americana.

Vendo que um festival da canção foi capaz de unificar e reestruturar um país, como no caso da Itália, porque não se pensar em uma forma de unir os muitos países europeus em uma competição musical, colaborando para pôr fim na desagregação resultante de duas guerras mundiais que abalaram o continente. Com este princípio que, em 1956, foi criado o Grande Prêmio Eurovisão da Canção Europeia (Grand Prix Eurovision de la Chanson Européene), depois chamado Festival Eurovisão da Canção (Eurovision Song Contest – ESC), realizado pela primeira vez no Teatro Kursaal, em Lugano, na Suiça.

O Festival Eurovisão da Canção foi concebido pela União Europeia de Radiodifusão (UER) (European Broadcasting Union – EBU), inicialmente chamada Eurovision – daí o nome do festival – criada em 1950, com o intuito de unir e organizar as emissoras de televisão que surgiam no continente europeu. O festival de música foi idealizado por um comitê, liderado por Marcel Bezençon, tornando-se o primeiro do gênero a fazer competir diferentes países.

Um dos maiores entusiastas do festival europeu, o apresentador britânico Terry Wogan, acredita que o evento seja “uma ideia verdadeiramente maravilhosa”. Segundo ele: “Como alguém pode imaginar que um júri turco pode julgar uma música sueca? Como é que um croata pode avaliar um fado português? Agora, se todos cantaram em inglês ... aí está a dificuldade.” (WOGAN apud GAMBACCINI, 1998, p. 07-08, tradução nossa).

No momento em que se consolidava uma maior consciência a nível global, evidenciada com a formação da ONU, da OTAN, do FMI, como mencionamos, surge o Festival Eurovisão da Canção, como um veículo de união entre os países. Tratava-se de um projeto audacioso, que logo provocaria debates “acerca das fronteiras e identidades”, mas que se destacaria pela “partilha de conteúdos e de meio de comunicação entre países, através de narrativas sobre a soberania e a cultura, dirigidas a uma audiência internacional.” (MANGORRINHA, 2015, p. 11-10). Sobre o surgimento e os aspectos tomados pelo Festival Eurovisão nos falam Ivan Raykoff e Robert Deam Tobin:

“O Eurovisão, fundado quando a Europa estava similarmente remodelando-se no rescaldo da II Guerra Mundial, fornece um contexto para reexaminar a definição de ‘Europa’ e as noções de identidade no novo século. A modernidade caracteriza o ideal da Europa pós-guerra para a qual o Festival Eurovisão da Canção fornece acesso literal e figurativo: uma sociedade que seja democrática, capitalista, amante da paz, multicultural, sexualmente liberada e tecnologicamente avançada.” (RAYKOFF; TOBIN, 2007, p. xviii, tradução nossa).

É inegável a relevância do eurofestival na política agregadora que desencadeou a formação destas inúmeras entidades e organizações que visavam a regulação e unificação, primeiro do continente europeu, depois de todos os países do mundo. Em 1957, surge a Comunidade Econômica Europeia (CEE), que se tornaria um dos pilares da União Europeia (UE), criada em 1992. Os seis países fundadores da CEE (nomeadamente, França, Itália, República Federal Alemã, Bélgica, Holanda e Luxemburgo), junto com a Suíça, foram os participantes do primeiro Festival Eurovisão da Canção, em 1956. Os mesmos sete países também são os fundadores da UER (O’CONNOR, 2010, p. 08), e a Suíça, vencedora da primeira edição com a canção Refrain, interpretada por Lys Assia, era – e ainda é – a sede da UER, como também foi a primeira sede da ONU, da qual permanece como sede europeia.

Devido ao pouco número de pessoas que possuíam aparelhos de TV, este primeiro Festival Eurovisão também se caracterizou mais como um programa de rádio, com algumas outras excepcionalidades. Cada um dos sete países pôde apresentar duas canções (o que não voltou a ocorrer em outras edições) e essas canções não poderiam ultrapassar os três minutos de duração. A edição seguinte foi realizada na Alemanha, pois a regra não permitia que, mesmo vencendo, um país sediasse duas edições seguidas do festival – o que foi mudado já a partir do ano seguinte. Obstante, um a um os países europeus foram criando suas seleções nacionais com o intuito de competir no festival europeu, o que culminou no início da proliferação dos festivais.

Os festivais despertaram o interesse de países no mundo todo, no entanto, as divergências fizeram com que o modelo fosse copiado, mas adaptado às diferentes realidades, como no caso do Festival Intervisão da Canção, começado em 1977, iniciativa semelhante à do Festival Eurovisão, mas adequada para competição entre os países do bloco soviético, e depois todos os países comunistas. Com o fim da União Soviética, a Rússia passou a competir regularmente no Eurovisão, embora tenha se esboçado tentativas de retomar o Intervisão.

Tempos depois, ainda que de modo bastante indefinido, a União Ásio-Pacífico de Radiodifusão (Asia-Pacific Broadcasting Union – ABU) daria início a iniciativas equivalentes – também por meio de negociações com a UER – criando, por exemplo, o Festival ABU da Canção (ABU TV Song Festival), para competirem países do contexto asiáticos, mas adiado muitas vezes e passando para o controle de instituições privadas.

Devemos destacar ainda o festival realizado pela OTI (Organização de Televisão Iberoamericana, depois chamada Organização das Telecomunicações Ibero-americanas), também congênere da UER, mas, como o nome evidencia, voltada para quadro ibero-americano. Essa organização realizou entre 1972 e 2000 o Festival OTI da Canção (ou Festival da Canção Ibero-Americana), que foi precedido pelas edições de 1969 e 1970 do Festival da Canção Latina, sediado na Cidade do México.

Incontáveis outros festivais também serviram de palco para a concorrência entre países, dentre estes, em sua maioria iniciados na década de 1960, destacam-se: o Festival de Split, na Croácia, o Festival de Sopot, na Polônia, o Festival de Brasov, na Romênia, a Olimpíada da Canção de Atenas, na Grécia, Festival da Canção Mediterrânea, na Espanha, o Festival de Tokyo, no Japão, o Festival de Luanda, em Angola, o Festival Internacional da Canção do Rio de Janeiro, no Brasil, o Festival de Viña del Mar, no Chile, dentre muitos outros, grande parte deles descontinuados. Poderíamos ainda mencionar os festivais de caráter estritamente nacional e outros apenas regionais, ou ainda os festivais não-competitivos, o que estenderia enormemente a lista.




[i] Uma Noite em 67. Dir. (es) Renato Terra; Ricardo Calil. Documentário. Brasil, 2010.

[ii] Eurovision Song Contest: The Story of Fire Saga. Dir. David Dobkin. Netflix. EUA, 2020.


Este texto é parte do artigo "Festivais da canção: um fenômeno global", publicado originalmente na revista História: Tendências e debates. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/13210




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