sábado, 19 de setembro de 2020

Música na TV

 

        A televisão é um meio de comunicação de massa que chegou ao Brasil através de uma iniciativa de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo. De acordo com Sérgio Mattos, a televisão no Brasil se desenvolveu em seis fases distintas, são elas:

“1) A fase elitista (1950 – 1964), quando o televisor era considerado um luxo ao qual apenas a elite econômica tinha acesso;

2) A fase populista (1964 – 1975), quando a televisão era considerada um exemplo de modernidade e programas de auditório e de baixo nível tomavam grande parte da programação;

3) A fase do desenvolvimento tecnológico (1975 – 1985), quando as redes de TV se aperfeiçoavam e começaram a produzir, com maior intensidade e profissionalismo, os seus próprios programas com estímulo de órgãos oficiais, visando, inclusive, a exportação;

4) A fase da transição e da expansão internacional (1985 – 1990), durante a Nova República, quando se intensificam as exportações de programas;

5) A fase da globalização e da TV paga (1990 – 2000), quando o país busca a modernidade a qualquer custo e a televisão se adapta aos novos rumos da redemocratização; e

6) A fase da convergência e da qualidade digital, que começa no ano de 2000, com a tecnologia apontando para uma interatividade cada vez maior dos veículos de comunicação, principalmente a televisão, com a Internet e outras tecnologias da informação.” (MATTOS, 2002, p. 78-79).

A música sempre este presente na televisão, em junho de 1939, na Feira de Amostras do Rio de Janeiro, houve uma primeira demonstração pública de imagens geradas e reproduzidas por um sistema de televisão no Brasil, realizada pela empresa alemã Telefunken, onde aparece a cantora Marília Batista. Em julho de 1950, em sua pré-estréia, ainda em fase experimental, a música novamente teve um papel importante.  “O programa de estréia consistiu de um espetáculo musical montado por Ribeiro Filho, incluindo como principal astro o cantor Frei Mojica.” (COSTELLA, 1984, p. 196), de acordo com uma declaração de Hebe Camargo ao jornal Diário de São Paulo, dez mil pessoas viram a imagem e ouviram o canto do Frei José Mojica. A primeira emissora de TV brasileira – também a primeira na América Latina –, a PRF-3 – TV TUPI – Canal 3 de São Paulo, foi ao ar em 18 de setembro de 1950. Neste dia, com 200 televisores espalhados pela cidade onde, mais uma vez, a música ganhou destaque, Lolita Rodrigues canta, as 17:00h, a “Canção da TV” ou  “Hino da Televisão Brasileira”, com música de Marcelo Tupinambá e letra de Guilherme de Almeida:

A cantora Marília Batista na primeira demonstração pública da empresa Telefunken (Foto publicada no tablóide Cine-Rádio Jornal, do Rio de Janeiro, de 15 de junho de 1939 apud TINHORÃO, 1981, p. 210).

HINO DA TELEVISÃO BRASILEIRA

Vingou como tudo vinga

No teu chão Piratininga,

A cruz que Anchieta plantou.

 

Pois dir-se-á que ela hoje acena

Por uma altíssima antena

A cruz que Anchieta plantou.

 

E te dá num amuleto

O vermelho, Branco e preto

Das penas do teu cocar.

 

E te mostra num espelho

O preto, branco e vermelho

Das contas do teu colar.

Em 20 de janeiro de 1951 iniciam as atividades da TV Tupi do Rio de Janeiro e mais uma vez a música entra em cena, após a abertura o apresentador anuncia as atrações e entre elas o grupo “Garotos da Lua” que tinha como integrante, o posteriormente bossanovista, João Gilberto. Já em 1952 foi inaugurada a TV Paulista, “Em 1953 veio a TV Record de São Paulo, e em 1955, a segunda emissora no Rio, a TV Rio. Em 1956 a TV Itacolomi, em Belo Horizonte e em 1960 a TV Brasília e a TV Nacional, em Brasília. Em 1961, a TV Excelsior e TV Cultura, em São Paulo: no Rio a TV Continental.” (SAMPAIO, 1984, p. 203), e inúmeras outras foram inauguradas em seguida (vide quadro 1) ou passaram por grandes transformações, chegando aos nossos dias como verdadeiros conglomerados (vide quadro 2) multinacionais exportando a produção cultural brasileira para vários países.

“Os Garotos da Lua”, com, o futuramente bossanovista, João Gilberto (no topo).

Michel Foucault nos esclarece que a televisão enquanto “espaço” corresponde ao que ele chama de heterotopia, pois se encontra alhures do restante da sociedade, segregado de seu entorno, apesar de discuti-lo e refleti-lo, segundo ele,

“A heterotopia consegue sobrepor, num só espaço real, vários espaços, vários sítios, que por si só seriam incompatíveis. Assim é o que acontece num teatro, no rectângulo do palco, em que uma série de lugares se sucedem, um atrás do outro, um estranho ao outro; assim é o que acontece no cinema, essa divisão rectangular tão peculiar, no fundo da qual, num ecrã bidimensional se podem ver projecções de espaços tridimensionais.” (FOUCAULT, 1986, p. 03).

Podemos acrescentar à isso a televisão que representa em um único lugar diversos outros lugares, bem como suas relações sociais. A TV como espaço de difusão musical, se tornaria cada vez mais importante, em 1952, pela TV Tupi, estreou o programa “Clube dos Artistas” que inicialmente foi apresentado por Homero Silva, porém, se consagraria com os apresentadores Airton e Lolita Rodrigues atingindo o ano de 1980, apesar de não ser um programa exclusivamente musical. Em 1955 estrearia o programa “Noite de Gala”, pela TV Rio, contando com a participação de Flávio Cavalcante (como repórter) que, mais tarde, em 1957, viria a apresentar o programa “Um Instante Maestro”, pela TV Tupi, este, apesar de polêmico, mais voltado para o seguimento musical. Em 1956 teria espaço o programa “Em tempo de música” na TV Tupi, sob o comando do prestigiado flautista Altamiro Carrilho. Já em 1958 outro programa estrearia “Discoteca do Chacrinha” apresentado por Abelardo Barbosa, o “Chacrinha”, iniciou na TV Tupi indo depois para a TV Rio e finalmente para a TV Globo, ajudou em muito a música brasileira, principalmente devido a sua popularidade, lançando muitos ídolos.

Homero Silva, apresentador do programa “Clube dos Artistas” pela TV Tupi (TINHORÃO, 1981, p. 212).

Nos anos de 1960 a televisão no Brasil efetivamente se consolidaria, o crescimento da população urbana e o aumento do número de emissoras contribuíram para que o “circo eletrônico” se popularizasse, tornando-se um mass media. “Em 1960 já existiam vinte emissoras de TV espalhadas pelas principais cidades brasileiras e cerca de 1,8 milhões de televisores.” (MATTOS, op. cit., p. 176). No início da década de 1960 surge um programa de grande relevância para a televisão brasileira, é o “Brasil 60”, que continuou em 61, 62 e 63, apresentado na TV Excelsior por Bibi Ferreira, por lá passaram Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes, Elis Regina, Dalva de Oliveira, Luiz Gonzaga, Aracy de Almeida, Aurora Miranda, e a rainha da Marinha Emilinha Borba. Os anos 1960 foram extremamente agitados e na segunda metade da década surgem diversos programas musicais como: “Bossaudade” apresentado por Elizete Cardoso, “Corte-Rayol Show” apresentado por Renato Corte Real e Agnaldo Rayol, “Spot-Light-BO 65” com Wilson Simonal e Claudete Soares, “O Fino da Bossa” (depois “O Fino 67”) apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, “Jovem Guarda” apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, todos estes apresentados no ano de 1965, pela TV Record. Depois foi a vez de “Pra Ver a Banda Passar” com Chico Buarque e Nara Leão e “Disparada” com Geraldo Vandré (1967), também estréiam “Ensaio Geral” e “Programa Raul Gil” (1967) (este último inicialmente pela TV Excelsior e depois por diversas outras emissoras). Segundo Marcos Napolitano, “Os musicais de televisão eram antigos, mas até o início dos anos 1960 disputavam o público com o rádio. Com os musicais semanais (Fino da Bossa, Bossaudade, Ensaio Geral, entre outros) consolidou-se uma nova linguagem musical e televisiva.” (NAPOLITANO, 2001, p. 55). A década de 60 ainda reservaria grandes surpresas para a música popular brasileira, esse período seria marcado pelo inicio da “Era dos Festivais”, os festivais televisivos que foram apresentados inicialmente pela TV Excelsior e depois pela TV Record, TV Rio e TV Globo, trouxeram a renovação da musica nacional com o surgimento de um panteão de novos compositores, letristas e intérpretes e seu cenário era um, “misto de comício, baile, show universitário e concerto artístico” (NAPOLITANO, 2007, pp. 88-89). Os festivais eram de fato um foco de protestos, contudo, René Rémond nos mostra que “[...] os meios de comunicação não são por natureza realidades propriamente políticas: podem tornar-se políticos em virtude de sua destinação, como se diz dos instrumentos que são transformados em armas.” (RÉMOND, 1996, p. 441). Já no final da década, em 1968, estreava o programa “Divino Maravilhoso” apresentado por Caetano Veloso e Gilberto Gil que marcaria o auge do movimento tropicalista. Em 1969 ainda surgiria o programa “MPB Especial, pela TV Cultura, apresentado por Fernando Faro.

Bibi Ferreira, apresentadora do programa “Brasil 60” da TV Excelsior. (MOYA, 2010, p. 96).

Jair Rodrigues e Elis Regina apresentadores do programa “O Fino da Bossa” da TV Record.


Wanderléia, Roberto Carlos e Erasmo Carlos, no programa “Jovem Guarda” pela TV Record. (NAPOLITANO, 2001, p. 57).

Na década de 1970 ocorreria o advento da televisão colorida.

“Lançada a TV a cores no Brasil em março de 1972, na Festa da Uva em Caxias, foi a mesma introduzida sob uma evolução gradativa e sempre crescente. De começo as programações coloridas eram poucas e curtas por diversos motivos: as produções era em número reduzido e pouco numerosos os telespectadores detentores de receptores a cor; as emissoras para o branco e preto, por motivos econômicos, somente aps poucos foram substituindo os seus transmissores, câmeras, telecines por equipamentos adequados aos sistema colorido.” (SAMPAIO, 1984,  p. 247). 

A música popular brasileira encontraria inúmeras barreiras nos anos 1970 devido à forte repressão política por parte do regime militar, assim, a história da televisão no Brasil obtém

“[...] maior liberdade nos primeiros anos e restrições no momento em que atinge uma idade tecnológica e organizacional apta a intervir, pelo seu conteúdo, nas transformações sociais. [...] Em outras palavras, a censura age através da supressão de imagens e palavras na televisão e sua substituição por problemas irrelevantes [...]. Aliás, esta censura esta censura serviu de reforço a uma predominância dos conteúdos de evasão nos Meios de Comunicação, tanto impressos quanto eletrônicos, nos últimos tempos.” (CAPARELLI, 1982, pp. 163-164).

Contudo, não faltaram programas que divulgassem as produções da música nacional. Em 1970 surge “Som Livre Exportação” pela Rede Globo apresentado [primeiro por integrantes do MAU e depois] por Elis Regina e Ivan Lins. Ainda pela Rede Globo, em 1972, surgiria o “Globo de Ouro” que teve vários apresentadores e ficou no ar até 1990. Também pela Rede Globo se iniciaria, em 1974, o “Roberto Carlos Especial” programa de fim de ano que ainda hoje é exibido pela emissora e conta com a participação de inúmeros artistas da música brasileira. A Rede Globo ainda apresentaria de 1976 até 1984 o programa “Brasil Especial” que mostrava perfis de grandes nomes da MPB. Em 1975, Benito de Paula chegou a comandar o programa "Brasil Som 75", na extinta TV Tupi e, em 1979, a mesma Tupi apresentou o programa “Abertura” que tinha a frente o cineasta Glauber Rocha.

Ivan Lins, ao piano, que junto a Elis Regina apresentava o programa “Som Livre Exportação”.



REFERÊNCIAS:

ADORNO, Theodor W.. Indústria Cultural e Sociedade. 5ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 3ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
CAPARELLI, Sérgio. Televisão e Capitalismo no Brasil. Porto Alegre: L & PM Editores, 1982.
COSTELLA, Antonio. Comunicação – do Grito ao Satélite: História dos Meios de Comunicação. 2ª edição.  São Paulo: Editora Mantiqueira, 1984.
FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. História da Comunicação: Rádio e TV no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1982.
FLÉCHET, Anaïs. Por uma história transnacional dos festivais de música popular: Música, contracultura e transferências culturais nas décadas de 1960 e 1970. Patrimônio e Memória, UNESP-FCLAs-CEDAP, vol. 7, nº 1, jun. 2011, pp. 257-271.
FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: Elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.
FOUCAULT, Michel. De outros espaços. Diacritcs, vol. 16, nº 1, primavera de 1986. Tradução de Pedro Moura.
MATTOS, Sérgio. História da Televisão Brasileira: Uma visão econômica, social e política. 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. 
MELLO, José Eduardo (Zuza) Homem de. A Era dos Festivais: Uma parábola. 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2003.
MIRANDA, Dilmar. Nós a música popular brasileira. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2009.
MOYA, Álvaro de. Glória in Excelsior: Ascensão, Apogeu e Queda do Maior Sucesso da Televisão Brasileira. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010.
NAPOLITANO, Marcos. A televisão como documento. 1998. In: BITTENCOURT, Circe (org.). O saber historico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1998. 
__________. Cultura Brasileira: Utopia e massificação. São Paulo: Contexto, 2001.
__________. A síncope das idéias: A questão da tradição na música popular brasileira. 1ª ed.. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
NEPOMUCENO, Rosa. Música Caipira: Roça ao rodeio, São Paulo: Ed. 34, 1999.
RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003.
RIBEIRO, Solano. Prepare seu coração: A história dos grandes festivais. São Paulo, Geração Editorial, 2002.
SAMPAIO, Mario Ferraz. História do Rádio e da Televisão no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro, Achiamé, 1984.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: Das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008.
SODRÉ, Muniz. A Máquina de Narciso: Televisão, Indivíduo e Poder no Brasil. 2ª edição. São Paulo: Editora Cortez, 1990. 
TINHORÃO, José Ramos. Música Popular: do gramofone ao rádio e TV. São Paulo: Ática, 1981.
ZAN, José Roberto. A MPB na TV. [S.n.t.].



Este texto é um exerto do artigo intitulado "Música na TV: A importância da televisão na difusão da Música Popular Brasileira através dos programas musicais", publicado no livro ALBUQUERQUE, Luiz Botelho; ROGÉRIO, Pedro; NASCIMENTO, Marco Antonio Toledo. Educação Musical: Reflexões, Experiências e Inovações. Fortaleza: Edições UFC, 2015.




segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Hino da Independência

 

A História tradicional conta que a Independência do Brasil foi conseguida no dia 07 de setembro de 1822, quando o príncipe regente D. Pedro I gritou “Independência ou Morte”, às margens do rio Ipiranga, transformando a ex-colônia portuguesa em uma monarquia e coroando D. Pedro como primeiro imperador do Brasil.

O episódio foi solenemente retratado por Pedro Américo em seu quadro Independência ou Morte, de 1888, mostrando o ato heroico do imperador que libertava os brasileiros da dominação colonial. A pintura é acusada de seguir um ímpeto nacionalista, e monarquista, que procurara valorizar a figura do imperador quando o Império já se encontrava desgastado. Além disso, contestadores e testemunhas asseguram que a cena não se deu como no quadro: que D. Pedro não estaria em um cavalo e sim em uma mula (!), mais apropriada para a subida da serra de Santos, de onde vinha o príncipe regente; que sua fisionomia não seria aquela, pois sofria de dores de estômago, em decorrência de algum alimento estragado que ingeriu; e que não era hábito de D. Pedro ser acompanhado por tantas pessoas como as que foram retratadas no quadro.


Independência ou Morte, de Pedro Américo, 1888.

 

A despeito destas questões, sempre foi ensinado que o Brasil tornou-se independente, tal como diz-se na letra do Hino Nacional Brasileiro, quando: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas/ De um povo heroico o brado retumbante”.

 D. Pedro I permaneceu no Brasil quando D. João VI regressou para Portugal com sua corte, em 1821, e era mesmo reconhecido como tendo mais apreço pelas terras brasileiras do que seu pai. Entretanto, dos Bragança, D. Pedro herdou não apenas as terras da colônia na América, mas também o gosto pela música.  De acordo com José Rolim Valença: “[…] a música corria no sangue de todos os Bragança: o primeiro rei da dinastia, D. João IV, foi dono de preciosíssima coleção de livros sobre música, grande parte dos quais destruída durante o terremoto de Lisboa, em 1755.” (VALENÇA, 1985, p. 95). Ademais, D. Pedro I era “apreciador e compositor de modinhas”:

“[…] gostava de cantar modinhas e tinha boa voz, além de ser também um profícuo pianista, tendo ele, juntamente com sua consorte D. Leopoldina e a Infanta D. Isabel Maria, tomado aulas com Sigismund Neukomm, seguindo o exemplo de seu pai, D. João VI, que sendo reconhecidamente um mecenas também tomou, quando jovem, aulas de teclas com João Cordeiro da Silva, organista da Capela Real do Palácio da Ajuda, em Lisboa. D. João VI, também é responsável pela introdução do piano e do estabelecimento das primeiras casas impressoras de música no Brasil, além de ter trazido vasto acervo musical (do qual muitas obras serviram ao padre José Maurício Nunes Garcia) e de ter repatriado a modinha em solo brasileiro, quando da vinda da família real.” (MONTEIRO, 2019, p. 147).

 

Primeiros Sons do Hino da Independência (ou Hino da Independência), de Augusto Bracet, 1922.

 

Em um outro quadro, Primeiros Sons do Hino da Independência (1922), de Augusto Bracet (acima), que também valoriza a figura do imperador, D. Pedro I é visto ao piano, cercado por pessoas da corte e em companhia de Evaristo da Veiga. Na verdade, à Evaristo da Veiga e D. Pedro I são atribuídos, respectivamente, a letra e a música do Hino da Independência.

 


Já podeis da Pátria filhos,

Ver contente a Mãe gentil!

Já raiou a Liberdade

No Horizonte do Brasil,

Já raiou a Liberdade

Já raiou a Liberdade

No Horizonte do Brasil!

 

Brava Gente Brasileira

Longe vá, temor servil;

Ou ficar a Pátria livre,

Ou morrer pelo Brasil.

Ou ficar a Pátria livre,

Ou morrer pelo Brasil.

 

Os grilhões que nos forjava

Da perfídia astuto ardil,

Houve Mão mais poderosa,

Zombou deles o Brasil.

Houve Mão mais poderosa

Houve Mão mais poderosa

Zombou deles o Brasil.

 

O Real Herdeiro Augusto

Conhecendo o engano vil,

Em despeito dos Tiranos

Quis ficar no seu Brasil.

Em despeito dos Tiranos

Em despeito dos Tiranos

Quis ficar no seu Brasil.

 

Ressoavam sombras tristes

Da cruel Guerra Civil,

Mas fugiram apressadas

Vendo o Anjo do Brasil.

Mas fugiram apressadas

Mas fugiram apressadas

Vendo o Anjo do Brasil.

 

Mal soou na serra ao longe

Nosso grito varonil;

Nos imensos ombros logo

A cabeça ergue o Brasil.

Nos imensos ombros logo

Nos imensos ombros logo

A cabeça ergue o Brasil.

 

Filhos clama, caros filhos,

E depois de afrontas mil,

Que a vingar a negra injúria

Vem chamar-vos o Brasil.

Que a vingar a negra injúria

Que a vingar a negra injúria

Vem chamar-vos o Brasil.

 

Não temais ímpias falanges,

Que apresentam face hostil:

Vossos peitos, vossos braços

São muralhas do Brasil.

Vossos peitos, vossos braços

Vossos peitos, vossos braços

São muralhas do Brasil.

 

Mostra Pedro a vossa fronte

Alma intrépida e viril:

Tende nele o Digno Chefe

Deste Império do Brasil.

Tende nele o Digno Chefe

Tende nele o Digno Chefe

Deste Império do Brasil.

 

Parabéns, oh Brasileiros,

Já com garbo varonil

Do Universo entre as Nações

Resplandece a do Brasil.

Do Universo entre as Nações

Do Universo entre as Nações

Resplandece a do Brasil.

 

Parabéns; já somos livres;

Já brilhante, e senhoril

Vai juntar-se em nossos lares

A Assembleia do Brasil.

Vai juntar-se em nossos lares

Vai juntar-se em nossos lares

A Assembleia do Brasil.


 

 


https://www.youtube.com/watch?v=6OM20Kd0N2o

 

A composição, supostamente, teria sido feita no mesmo dia do “grito da independência”, logo depois da chegada de D. Pedro de sua viagem a Santos, e apresentada em público na noite daquele mesmo dia. Não obstante, o Hino da Independência, comprovadamente chamado antes Hino Imperial e Constitucional, logo teria uma versão impressa que começaria a ter circulação (CARDOSO, 2012).

Partitura do Hino Imperial e Constitucional (Hino da Independência), 1830 (WALSH apud CARDOSO, 2012, p. 40).

 

            O Hino da Independência ainda teria assumido o nome de Hino Nacional no Brasil, até a ida de D. Pedro para Portugal (onde era Pedro IV), para tentar apaziguar a Guerra Civil Portuguesa e retomar o trono para sua filha Maria II, conflito que terminaria vencendo ao lado dos liberais, mas que lhe traria uma doença, que agravada por uma tuberculose, culminaria em sua morte em 1834. Ali, D. Pedro ainda comporia outro Hino Nacional, o Hino Constitucional ou Hino da Carta, que, em 1910, seria substituído por A Portuguesa.

 

 

 Referências Bibliográficas:

 

  CARDOSO, Lino de Almeida. Subsídios para a gênese da imprensa musical brasileira e para a história do Hino da Independência, de Dom Pedro I. Per Musi, Belo Horizonte, nº 25, 2012, p. 39-48.

MONTEIRO, José Fernando. A Modinha Brasileira: Trajetória e veleidade (sécs. XVIII-XX). Curitiba: Appris, 2019.

 VALENÇA, José Rolim. Modinha: Raízes da música do povo. São Paulo: Empresas Dow, 1985.


 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

O fado e o Brasil: Uma (re)descoberta das origens brasileiras do fado.


O fado é, reconhecidamente, o representante da “alma portuguesa” por excelência, mas suas referências nos conduzem a parentescos árabes, espanhóis e também brasileiros. É no século XIX que insurge na capital portuguesa, um tipo de música, ainda mal formulado, praticado pela escumalha lisboeta, nas tabernas, acompanhados por violas, bandolins e a, ainda igualmente mal estruturada, guitarra portuguesa. Essa música recebeu o nome de “fado”, vocábulo derivado da palavra latina “fatum” (que também deu origem a “fada”) e significa “destino, sina, sorte, fortuna e fatalidade.”  (LOPES, 2014, p. 14; LOPES, 2016, p. 09). Nesta acepção, o termo “fado” já foi utilizado por Luís Vaz de Camões no século XVI:
“Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura prisão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?”

E por Bocage, no século XVIII:
“Que eu fosse enfim desgraçado,
Escreveu do fado a mão;
Lei do fado não se muda,
Triste do meu coração!”

Contudo, as verdadeiras origens do fado são dispersas e difusas, o que de forma alguma desqualifica o gênero. Em Música, Doce Música (1934), Mário de Andrade deixa clara a autenticidade do fado ao ratificar que: “nascido na Conchinchina ou na Groelândia, nem por isso o Fado deixará jamais de ser legitimamente português.” (ANDRADE, 1934, p. 111). O mesmo faz Eulália Moreno, nas páginas que antecedem a compilação de biografias realizada por Thais Matarazzo, no livro Fado no Brasil: Artistas & Memórias (2013):
“Nascido em navios negreiros ou ‘nos peitos dos marinheiros’, nas vielas mal afamadas de Lisboa, onde transitou até os salões reais, o Fado é a música popular de Portugal porque pelo povo português foi adotado como expressão da sua nacionalidade e ganhou o Mundo e não apenas o vasto mundo da Língua Portuguesa.” (MORENO apud MATARAZZO, 2013, p. 11).



O Fado, José Malhoa, 1910.

De fato, a expansão portuguesa pelo mundo, inequívoca e inevitavelmente, ocasionou cruzamentos diversos, inclusive entre a música portuguesa e a musicalidade local das colônias: “[…] originando gêneros extremamente característicos como o mandó, em Goa, a morna, em Cabo Verde, a modinha, no Brasil e outras melodias de influência portuguesa em Malaca, Timor e Indonésia, mantendo ainda traços comuns com o fado, em Portugal.” (MONTEIRO, 2019, p. 109, rodapé). Moreno, no entanto, ao evidenciar o entrecruzamento das culturas brasileira e portuguesa, também levanta um questionamento: “[…] se o Cristo Rei abraça o Cristo Redentor, com certeza, ambos abençoam as duas Pátrias unidas pelo mesmo mar e pela mesma Língua. E nos permite até sonhar… Quem sabe o Fado será mesmo brasileiro?” (MORENO apud MATARAZZO, op. cit., pp. 11-12).
Muitos são, de fato, os que atribuem e evidenciam as origens brasileiras do fado, e de acordo com o folclorista Renato Almeida, que inclui o fado no capítulo “As Cantigas do Brasil”, em seu História da Música Brasileira ([1926] 1942): “Que o fado nasceu no Brasil, parece já haver acordo definitivo por quantos estudaram o assunto, e também não resta dúvida de que o lundu foi seu avô.” (ALMEIDA, 1942, p. 78). Há ainda fartas citações de fados praticados nos terreiros das festas coloniais no Brasil, onde, na verdade, o fado nasce não como música, mas, inicialmente, como dança. E, apesar de Rui Vieira Nery salientar que o “fado dança”, praticado no Brasil colônia, “está longe ainda de ser o Fado português”, reconhece nele: “[...] o núcleo duro da sua origem, de que emergem inúmeras facetas de uma persistência ininterrupta no seio da prática fadista portuguesa [...] e que tenderão depois a manter-se no género, em muitos casos até os nossos dias.” (NERY, [2004] 2012, p. 23). Mas, como também adverte Vieira Nery, reivindicando a reconhecida ‘portugalidade’ do fado:
“A constatação – historicamente incontornável – de que as primeiras manifestações registadas do Fado tiveram lugar no Brasil colonial não tornam ‘menos português’ o seu desenvolvimento ulterior em Portugal, até porque este se foi concretizando sob formas constantemente renovadas que em cada fase histórica sucessiva da evolução do género souberam traduzir realidades socioculturais cada vez mais identitárias do nosso País.” (NERY, op. cit., p. 50).

Mário de Andrade corrobora com essa assertiva ao afirmar que: “O que realiza, justifica e define uma criação nacional folclórica é a sua adaptação pelo povo.” (ANDRADE, op. cit., p. 111). Ou seja, para Mário de Andrade, o fado é português e se tornou português, pois foi integrado àquela cultura e corresponde à uma “expressão de nacionalidade” portuguesa, porque assim foi reconhecido pelos portugueses “e se definitivou como forma nacional permanente”, independentemente de onde encontre suas origens e/ou primeiras manifestações. Para reforçar sua tese, Andrade compara o fado à modinha, que é brasileira porque foi no Brasil que se desenvolveu e se estruturou indiferentemente de ter-se originado da moda rural portuguesa trazida pelos colonizadores. Ainda nesta direção, Pinto de Carvalho, o Tinop, abre seu livro, História do Fado, com as seguintes palavras: “É pelas canções populares que um paiz traduz mais lididamente o seu caracter nacional e os seus costumes.” (CARVALHO, [1903] 1910, p. 01).


Capa da primeira edição de História do Fado (1903), Pinto de Carvalho (Tinop).

Interessante é constatarmos, no entanto, que “o fado teve existência brasileira já muito importante”, como comprova Mário de Andrade através do estudo de publicações de teóricos, dicionaristas e viajantes (o que chama de “fadografia portuguesa”) (ANDRADE, op. cit., p. 116). Mário de Andrade apresenta como referência mais recuada ao fado no Brasil a publicação Essai Statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve, do veneziano Adrien Balbi. Nesta obra, depois de anunciar as danças populares portuguesas como “muito grosseiras ou muito indecentes” (“très-grossières ou très-indécentes”), o viajante destaca que são “sobretudo importadas do Brasil e de origem africana” (”plutôt importées du Brésil et d’origine africaine”), enumerando o “lundu”, o “fandango português”, esta última, segundo ele, a “verdadeira dança nacional” (“le vraie danse nationale”), o “baile da roda” e, por fim: “Le chioo [(chiba?)], la chula, le fado et la volta no meio”; estas as “mais comuns e notáveis do Brasil” (“les plus communes et les plus remarquables du Brésil”) (BALBI, 1822, p. ccxxviii; ANDRADE, op. cit., p. 116).
José Ramos Tinhorão, por sua vez, propõe-se a encerrar a questão em Fado: Dança do Brasil. Cantar de Lisboa: O fim de um mito (1994), e é contundente em assegurar que o fado “apareceu no Rio de Janeiro de fins do século XVIII”, mas, divergindo um pouco de Mário de Andrade, aponta como “primeira descrição documentada do fado”, “a do viajante Louis Claude Desaulces de Freycinet (1771-1842), que por duas vezes visitou o Rio de Janeiro (de inícios de Dezembro de 1817 a Janeiro de 1818, e de Junho a Setembro de 1820)”. De acordo com Tinhorão:
“No seu livro Voyage autour du monde…, publicado em 1825, após o seu regresso a Paris, ao recordar o que vira na corte brasileira de D. João VI em matéria de diversões, registava Freycinet: ‘As classes menos cultas preferem quase sempre as lascivas danças nacionais, muito parecidas com as dos negros da África. Cinco ou seis delas são bem caracterizadas: o lundum é a mais indecente; e em seguida o caranguejo e los fados [sic] em número de cinco: estas dançam-se com a participação de quatro, seis, oito e até dezasseis pessoas: às vezes são entremeadas de cantos improvisados; apresentam variadas figurações, mas todas muito lascivas.” (FREYCINET apud TINHORÃO, 1994, p. 50).
Rui Viera Nery repete os mesmos viajantes citados por Mário de Andrade e José Ramos Tinhorão, como responsáveis pelos primeiros registros do termo “fado”, ainda que enquanto dança praticada no Brasil apenas, e acrescenta outros viajantes que também cunharam o termo em seus escritos, destacando também o poeta Felisberto Inácio Januário Cordeiro, chamado na Arcádia como Falmeno, que publica Poesias de um Lisbonense, em 1927, no Rio de Janeiro, de onde Vieira Nery extrai os versos:
“Em espaçoso terreiro
Gentes vi bailar mui bem
Mimoso Fado e também
Engraçado Tacorá
Nas belas noites de lua
Quando é lindo o Paquetá
[…]
Sem largas das mãos a lira,
Pelo prazer transportado,
Celebro os bailes do Fado,
Tacorá, carangueijinho…
Nestas chulices de Amor
Paquetá é mui bonsinho.” (CORDEIRO apud NERY, op. cit., pp. 20-22).

Rui Vieira Nery afirma ainda que: “O primeiro aspecto a constatar na procura das raízes históricas do Fado é a de que até o final do século XVIII não conhecemos uma única fonte escrita portuguesa em que esta palavra seja utilizada com qualquer conotação musical.” (NERY, op. cit., p. 17). Essa inexistência seria propositada, partindo dos autores eruditos que tomados por um ímpeto puritano, relutaram em mencionar “uma prática artística de natureza pouco respeitável”, ao que Nery chama de “omissão conspiratória” (NERY, op. cit., p. 17).
Neste ponto, entretanto, há certa imprecisão, pois notamos que em seu Diário de Viagem, D. Luís Antônio de Sousa Botelho Mourão, o 4º Morgado de Mateus, governador de São Paulo entre 1765 e 1775, registra em seus manuscritos ter presenciado “admiráveis tocatas”, um festejo com “arias e modilhos” e ainda um “batuque com muitos fados” (MOURÃO, 1765-1774). Neste registro de Botelho Mourão, apesar de mais uma vez se evidenciar a ligação entre o fado e a música dos negros da colônia (através do termo “batuque”[1]) e de haver uma aparente inclinação do termo “fado” para denominar um tipo de “música”, e não exclusivamente uma “dança”, é difícil precisar a que tipo de música ou dança se refere, ou se apenas o vocábulo é utilizado como algo generalizante (como “batuque”). Difícil também é assegurar se o morgado trouxe este termo consigo de Portugal ou travou contato com o termo no Brasil. Mas, não há dúvidas de que talvez esteja aí o mais antigo registro do nome “fado”, documentado, em sentido musical, e por um português, vindo da metrópole.
Manuel Antônio de Almeida, todavia, no romance folhetinesco Memórias de um Sargento de Milícias, publicado originalmente em 1854, mas ambientado “‘no tempo do Rei’, ou seja, entre 1817 e 1821”, como acrescenta Tinhorão (op. cit., p. 52), descreve com perfeição a presença do “fado-dança” no Brasil. Ao narrar o nascimento do personagem principal, Leonardo, filho dos portugueses Leonardo Pataca e Maria, enuncia o autor ao descrever a festa de batizado do menino: “Já se sabe que houve nesse dia função: os convidados do dono da casa, que eram todos d’além-mar, cantavam ao desafio, segundo seus costumes; os convidados da comadre, que eram todos da terra, dançavam o fado.” (ALMEIDA, 1996, p. 02). Manuel Antônio de Almeida, ao contrário de Mário de Andrade, atribui clara nacionalidade brasileira ao fado, e origem portuguesa à modinha, ao destacar que na mesma celebração, Leonardo Pataca, como bom português que era, garganteou uma “modinha pátria”, confusão que o tempo se encarregou de desfazer e sobre o que discutimos em outra oportunidade (MONTEIRO, op. cit.).
Esse fado, notabilizado por Manuel Antônio de Almeida, todavia, tal como apontou o viajante Balbi, era típico das celebrações mais baixas, de uma “algazarra” “em que a decência e os ouvidos dos vizinhos não eram muito respeitados” (ALMEIDA, op. cit., p. 12). Na verdade, Almeida, páginas a frente, ao descrever uma “festa de ciganos”, faz uma substanciosa descrição do que era o fado no Brasil, uma dança “voluptuosa”, com forma diversificada (misto de lundu e fandango espanhol), de “passos dificultosos”, “airosas posições”, “negaças e viravoltas”, com “estalar de dedos”, “bate palmas”, as vezes “sapateados”, dançada em roda, sozinho ou por casais, induvidavelmente devotada à chalaça e à vadiagem. A música era ainda mais incerta, uma música diferente para cada dança, mas sempre tocada na viola, podendo o tocador entoar ainda uma cantiga verdadeiramente poética. Isso poderia durar uma noite ou vários dias e noites inteiros (ALMEIDA, op. cit., p. 15).


A dança do fandango, James Cavanah Murphy, 1795.




A dança do lundu, Johann Moritz Rugendas, 1835. 

Manuel Antônio de Almeida descreve-nos uma dança claramente urbana, praticada no Rio de Janeiro, novo centro do país e capital do Império. Mas, outras citações do fado, enquanto dança brasileira, localizam-no no meio rural, indicando que o fado insurge no Brasil e ganha os meios urbanos, em especial o Rio de Janeiro, e depois de esquecido nos meios citadinos, o fado é assimilado pela população do interior do país, passando a ser uma manifestação também do campo. Segundo José Ramos Tinhorão:
“Essa rápida trajectória descendente da popularidade do fado brasileiro a partir da segunda metade de Oitocentos ficaria atestada, aliás no teatro – desde O Juiz da Paz da Roça, de Martins Pena, de 1838, à revista O Carioca, de Artur Azevedo e Moreira Sampaio, de 1886, onde o fado figurava caricaturalmente como dança da roça, e na literatura de ficção, bastando o romance A Família Aguda, de Luís Guimarães Júnior, para documentar em 1870 a sua morte como dança urbana.” (TINHORÃO, op. cit., pp. 54-55).
Em 1888, Mello Morais Filho publica Festas e Tradições Populares do Brasil, onde indica também a presença do fado no meio rural, através da descrição de um “Casamento na Roça”. Neste capítulo, que abre o livro, Mello Morais também atribui nacionalidade brasileira ao fado: “E quando as danças estrangeiras paravam, o fado rompia nas violas, ponteadas pelos tocadores da roça, no salão que começava a aclarar-se das barras longínquas do amanhecer.” (MORAIS FILHO, 1967, pp. 38-39). Na celebração, o fado assume uma função festiva, dançante, mas secundária, só assume protagonismo depois de terminadas as solenes danças estrangeiras e notadamente se direciona às camadas mais baixas, como denota a engraçada cantiga transcrita pelo autor:
“O fado veio no mundo
Para amparo da pobreza
Quando me vejo num fado
Não me importo com a riqueza.” (MORAIS FILHO, op. cit., p. 39).

Mário de Andrade também se refere a uma publicação do Dr. Emílio Germon, na revista Iris, do Rio de Janeiro, em 1848, em que descreve “festas sertanejas” nas quais: “Os primeiros sons são lentos e monótonos, e às vezes interrompidos pelas convivais gargalhadas das Marias e dos Manoeis; mas logo se precipitam; começa o fado, muda a cena.” (GERMON apud ANDRADE, op. cit., p. 115).
Como deduz-se pela indicação à “Marias e Manoeis” no trecho acima e pela narrativa de Manuel Antônio de Almeida, ainda que constatemos que o fado tem proveniência do Brasil e que lhe seja atribuída nacionalidade brasileira, ao menos inicialmente, enquanto dança, é possível reconhecer que mesmo durante sua permanência no país, sempre esteve atrelado à vivência portuguesa, em meio aos colonos, imigrantes e integrado à convivência entre os portugueses e brasileiros e entre portugueses e seus descendentes.
Foi esse gosto e apreço dos portugueses pelo fado encontrado no Brasil o que levou o gênero a ser repatriado em solo português, adotado como música nacional e não só isso: “Encontrou na Severa a sua lenda e na guitarra o seu instrumento ideal, foi batido romanticamente em Coimbra, e tornou-se enlevo e paixão da gente […]” (ALMEIDA, op. cit., p. 79); como lembra Renato Almeida, que também salienta: “É preciso, porém, não esquecer que se o povo canta é porque gosta e sente, e essas razões ocultas a gente não pode adivinhar, sendo perigoso e inútil condená-las. Também, não será por protestos, altos ou judiciosos, que o Manoel e a Maria deixarão de bater seu fado…” (ALMEIDA, op. cit., p. 79).



Bibliografia:

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ALMEIDA, Renato. História da Música Brasileira. Segunda Edição correta e aumentada. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Comp. – Editores, [1926] 1942.
ANDRADE, Mário. Música, Doce Música. São Paulo: L. G. Miranda Editor, 1934.
BALBI, Adrien. Essai Statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve. Tome Second. Paris: Chez Rey y Gravier, Libraires, 1822.
CARVALHO, (Tinop) Pinto de. História do Fado. Lisboa: Livraria Moderna, [1903] 1910.
CARVALHO, Ruben. Um Século de Fado. Alfragide: Ediclube, 1999.
GALLOP, Rodney. Cantares do Povo Português. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1937.
LOPES, Samuel. Encarte. In: Fado: Uma expressão portuguesa. livreto e CD’s. Rio de Mouro: Printer Portuguesa/ Queluz de Baixo: Seven Muses Music Books, 2014.
__________. Encarte. In: Fado Portugal: 200 anos de fado. livreto e CD’s. Rio de Mouro: Printer Portuguesa/ Queluz de Baixo: Seven Muses Music Books, 2016.
MATARAZZO, Thais. Fado no Brasil: Artistas & Memórias. São Paulo: ABR Editora, 2013.
MONTEIRO, José Fernando S.. A Modinha Brasileira: Trajetória e Veleidades (sécs. XVIII-XX). Curitiba: Editora Appris, 2019.
MOURÃO, Luis Antônio de Sousa Botelho. [Diário de Viagem] DORROTA q fez o Exmo Sr D, Luiz Antonio G. e Capp. Gen. da Cid. de São Paulo, hindo pa á do rio de Jan., en a Náo de Guerra N. Sra da Estrella de q hera Comand. D. Manoel Machado, Irmão do Sr de Entre homem e Cavado.” 1765-1774. Arquivo de Mateus. BN – MSS, 21,4,14-16 / Diário de viagem de D. Luís António de Sousa Botelho Mourão (Livros de), 1765/03/23 – 1768/12/31, Fundação Casa de Mateus, SICM / SSC 06.02 / SUBSI GSP / SSC 01.01 / SR / DIÁRIO DE VIAGEM – Lote 991.02.
MURPHY, James Cavanah. Travels in Portugal Through the Provinces of Entre Douro e Minho, Beira, Estremadura, and Alem-Tejo, in the years 1789 and 1790. London: Printed for A. Strahan, and T. Cadell Jun. and W. Davies in the Strand, 1795.
NERY, Rui Vieira. Para uma História do Fado. Edição revista e ampliada. Lisboa: Público, Comunicação Social, SA/ Corda Seca, Edições de Arte, SA, [2004] 2012.
RUGENDAS, Johann Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann & C., 1835.
TINHORÃO, José Ramos. Fado: Dança do Brasil, Cantar de Lisboa: O fim de um mito. Lisboa: Editorial Caminho, 1994.


[1] “Batuque” era nome genérico para as manifestações musicais dos negros. A ideia geral de que o lundu era avô do fado (tanto quanto do samba) vem de uma hipótese, mais provável e evidente, por ser o lundu a música dos negros mais aceita entre a sociedade colonial. Na verdade, o lundu foi a primeira manifestação cultural dos negros amplamente aceita pela sociedade branca da colônia, tendo também migrado para a metrópole portuguesa, onde foi praticado pela corte, ganhando ares e adornos eruditos. E Rodney Gallop também aproxima o fado do lundu, por enxergar neles uma lascividade comum (GALLOP, 1937, p. 18).




Este artigo foi originalmente publicado no portal Musica Brasilis. Disponível em: https://musicabrasilis.org.br/temas/o-fado-e-o-brasil-uma-redescoberta-das-origens-brasileiras-do-fado